O sol escaldante fervia nos meus
últimos fios de cabelo, que pareciam derreter de calor. A fila para se despedir
do falecido era grande, de modo que eu nem tentei me aproximar do corpo. Me
contentava apenas em marcar presença naquela cerimônia fúnebre de um praticamente
desconhecido. Sim, embora Alípio fosse uma figura notável, comigo não
compartilhava nenhuma intimidade. Conversamos apenas em duas oportunidades. A
primeira há mais de uma década e a última há quatro dias. Para entender nosso
segundo e último encontro, preciso contar do primeiro.
Era verão como agora, eu olhava pela
janela do trem, enquanto esvaziava meu cantil de bolso outrora cheia de
conhaque. O trem saía de Lisboa rumo a Paris. Alípio sentou do meu lado em
determinado trecho que não me recordo. Eu já estava com meus sentidos enibriados
pela mistura etílica do conhaque e algumas taças de vinhos que bebi desde que o
trem partiu. Dito isso, impossível recordar de como nossa conversa começou. Só
sei que ela fluiu com a naturalidade de um curso d’água.
Alípio se mostrava muito inteligente
e culto e gostava dos mesmos livros e filmes que eu. Na época ele era apenas um
jovem, talvez uns 22 anos. A bebida baixou minhas defesas e me faz falar mais
do que costumava. Contei a Alípio quase toda minha história de vida. Contei-lhe
vários pormenores que me sucederam desde a infância, meu primeiro amor, a morte
de meus pais, e depois como conheci minha amada Leila lendo debaixo de uma flor
de cerejeira. Contei-lhe como vi nosso filho adoecer e falecer sem que
pudéssemos fazer nada e de como ela foi embora meses depois deixando apenas um
bilhete inacabado. Contei-lhe até do tempo em que estive preso por um crime que
jamais cometi.
Não caberia aqui relatar tudo o que
conversamos durante aquela viagem, só digo que saí de lá com o sentimento de
que havia conquistado um amigo. Ele anotou meu nome completo e eu anotei o
dele. Prometi uma visita a ele quando retornasse à Lisboa, mas foi uma promessa
que por razões pouco compreensíveis nunca cumpri.
Passarem-se anos até eu ver uma foto
com o nome de Alípio em uma revista de literatura. Ele estava lançando seu
terceiro romance e nessa altura já aglutinava em torno de si certo prestígio e
sucesso. Li seu romance quase que de uma vez só. Foi então que resolvi comprar
seu primeiro romance, considerado pela crítica como uma estreia grandiosa no
mundo das letras. Comecei a lê-lo e a partir daí fui tomado pelo estarrecimento
e incredulidade. Aquele maldito romance de estreia contava minha história entre
seus parágrafos e pontos. Sim, tudo que eu havia lhe contado durante o trajeto
de trem estava lá. As mortes, a separação, meus dramas pessoais espalhados
entre aquelas páginas frias. O desgraçado conseguiu contar minha vida melhor
que eu poderia fazer. Na hora fui tomado pela raiva. Porém, nada podia fazer
contra ele. Não se tratava de um plágio já que essa história jamais havia sido
publicada por outro escritor. Além disso ele mudou os nomes, o lugar e as datas
dos acontecimentos e eu não tinha armas para rende-lo. Queimei o livro na
lareira e segui minha vida como se nunca o tivesse lido. Era como se ele fosse
meu testamento secreto, escrito pelas mãos de um desconhecido.
Porém, eu queimara o livro, não seu
escritor. Então, há exatos quatro dias conversei com Alípio pela segunda vez em
minha vida. A noite já caia sonolenta e não havia uma nuvem sequer no céu para
cobrir a lua e as estrelas. Ouvi as batidas na porta de meu apartamento. Olhei
pelo olho mágico e reconheci como por maldição a figura de Alípio. Abri a porta
e ele me encarou com os olhos frios de desespero pedindo para falar comigo. Não
precisávamos de apresentações e acho que no fundo ambos pressentíamos que um
dia estaríamos frente a frente novamente.
Ele se sentou. Ofereci um whisky
vagabundo que havia comprado na mercearia da esquina e ela aceitou virando o
primeiro copo em um gole só. Enchi o copo novamente e também comecei a beber.
Alípio estava com as feições severas e o olhar turvo, parecia carregado de
preocupação. Ele tentou pedir perdão pelo livro. Disse que me procurou várias
vezes sem êxito. Talvez fosse verdade. Andei itinerante por longos anos, até
voltar para cá e me estabelecer fixamente há um ano. Disse-me que esperou
também que eu o procurasse para exigir que pedisse autorização para publicar
aquela história que era mais minha que dele, mas que isso nunca aconteceu.
Sua voz estava claudicante e com tons
de agonia. Contou-me que convivia com essa e tantas outras culpas. Havia
plagiado a obra de uma antiga paixão e cometidos outras traições de todas as
ordens. Disse-me que precisava pedir perdão para acertar essa conta.
Perguntei-lhe porque agora. Então ele me disse que estava com um terrível
pressentimento. Tinha pesadelos e sentia-se encurralado.
- O rei morreu, mas não foi
esquecido. Tudo o que fazemos uma hora vem ao sol. – Disse ele virando outro
copo.
- Do que você está falando? - Indaguei,
também bebendo a minha quota.
- São tantas coisas que você não
entenderia. Só sinto que uma sombra paira sobre mim. Traições, mentiras,
orgulho. E ainda tem essa figura desgraçada.
- Figura desgraçada?
- Sim. Ela tem me perseguido e quer
acabar comigo, tenho certeza. Essa figura está sempre vestida de preto. Usa um
sobretudo até às canelas e um chapéu negro de abas largas que cobre
praticamente todo o rosto. Me espreita sempre de longe de modo que some antes
que eu consiga alcança-lo. A vi ontem pela janela de meu quarto. Era madrugada.
Eu olhei pelo vidro e ela estava lá, em pé na esquina oposta, encarando-me
fixamente enquanto fumava um cigarro. Não sei se é homem ou mulher. Dizem que
os anjos não possuem sexo, talvez os demônios também não.
- Acho que o demônio tem coisas mais
importantes para fazer que perturbar a alma de um escritor.
- Então é alguém que quer acabar
comigo. – Disse-me olhando nos fundos dos meus olhos.
Respirei e disparei:
- Já entendi. Você não veio aqui
pedir meu perdão. Você apenas quer saber se não sou eu a figura que tem lhe
perseguido. Qual é, poderia ter lhe procurado muito antes, não tenho motivo
para fazê-lo agora. – Alípio ficou quieto por um instante.
- Preciso descobrir quem é.
- Isso se ela existir. Você anda
assustado. A mente perturbada pode lhe pregar peças. Criar imagens que não
existem e perigos onde não se tem.
- Duvido muito que seja o caso. Mas,
uma coisa é verdade, ando bebendo muito ultimamente. Preciso manter a
serenidade.
- Então acabamos por hoje?
- Sim. Poderia apenas me dar uma água
gelada? – Disse-lhe que sim e fui caminhando lentamente até a cozinha para
pegar a água. Abri a porta da geladeira e enchi um copo limpo primeiramente
para mim. Bebi a água gelada com goles vagarosos. Depois peguei outro copo para
ele e o enchi. Quando estava voltando para sala vi a porta fechando
violentamente e pude ouvir os passos pesados e apressados de Alípio descendo às
velhas escadas de cimento de meu prédio. Foi então que reparei que Alípio havia
revirado uma estante que ficava logo à frente da mesa em que conversávamos. Da
maneira, que saiu, até parece ter descoberto algo que o assustou e que nessa
altura eu não poderia compreender, até porque minha mente também estava
flutuando entre o álcool e a nicotina, que eu consumia desde antes da
inesperada visita de Alípio.
Pois bem. Foram assim as únicas duas
vezes que conversei com Alípio. Agora ele estava morto e eu estava ali entre
centenas de rostos desconhecidos que queriam se despedir dele ou então ter
certeza de que ele realmente morreu. Me ocorreu, então, que talvez ele pudesse
guardar um segredo que não deveria revelar a ninguém e que isso poderia ser a
razão de sua morte. Ou então ele só havia irritado algumas pessoas. De qualquer
modo, eu não tinha participação nenhuma nisso. No fundo, nunca desejei a morte
de Alípio. Pelo menos não de forma consciente e isso já me alivia do peso da
consciência.
Enquanto derreto no sol, uma mulher
de vestido e sapatos negros se aproxima de mim. Ela tem um perfume enigmático
que não consigo decifrar, apenas apreciar. Seus lábios estão rubros como um
rubi e seus cabelos pretos caem até as costas. Seus olhos estão escondidos de
trás de um óculos escuro e ela segura entre os dedos pálidos e finos uma
violeta vermelha.
- Olá. - Diz ela em minha direção com
uma voz tenra.
- Olá. - Respondo.
- Você conhecia o falecido. –
Pergunta-me.
- Apenas dos livros e você? –
Retruco.
- Conheço melhor do que eu queria.
- Então meus pêsames.
- Obrigada. – Ela respira fundo e
parece ficar introspectiva. Então finalmente fala novamente:
- Como dizia Ingmar Bergman “somos
todos mortos insepultos”. Acho que a morte é a única garantia que temos contra
o mundo. – Antes que eu pudesse concordar, a mulher sai de perto de mim e se
mistura rapidamente na multidão.
Minhas costas estão suadas e meus
lábios salgados. Acho que já fiquei aqui o suficiente. Me dirijo para a saída
quando, com um relance de olhar, avisto do lado oposto uma figura vestindo um
sobretudo negro até às canelas. Seu chapéu também negro cobre quase todo seu
rosto que parece voltado para a multidão e consigo ver apenas um sopro de
fumaça saindo de sua boca coberta. Por um instante penso em me aproximar. Mas
essa luta não é minha. Seja lá qual fosse a dívida de Alípio, ele pagou com seu
próprio sangue. A roda da fortuna às vezes trilha caminhos insondáveis.
Desabotoo o paletó. Já estou na rua.
Tiro meu cantil do bolso e percebo que não há uma gota nele e me sinto aliviado
de ver que estou perto de um mercado. “- Afinal, quem poderia me julgar?”. Digo
para mim mesmo enquanto deslizo pela calçada com passos descompassados.
Grégor Carlos Marcondes
O homem era um fenómeno de popularidade :))
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