02/09/22

O Alípio Morreu - Capítulo 9

 


O sol escaldante fervia nos meus últimos fios de cabelo, que pareciam derreter de calor. A fila para se despedir do falecido era grande, de modo que eu nem tentei me aproximar do corpo. Me contentava apenas em marcar presença naquela cerimônia fúnebre de um praticamente desconhecido. Sim, embora Alípio fosse uma figura notável, comigo não compartilhava nenhuma intimidade. Conversamos apenas em duas oportunidades. A primeira há mais de uma década e a última há quatro dias. Para entender nosso segundo e último encontro, preciso contar do primeiro.

Era verão como agora, eu olhava pela janela do trem, enquanto esvaziava meu cantil de bolso outrora cheia de conhaque. O trem saía de Lisboa rumo a Paris. Alípio sentou do meu lado em determinado trecho que não me recordo. Eu já estava com meus sentidos enibriados pela mistura etílica do conhaque e algumas taças de vinhos que bebi desde que o trem partiu. Dito isso, impossível recordar de como nossa conversa começou. Só sei que ela fluiu com a naturalidade de um curso d’água.

Alípio se mostrava muito inteligente e culto e gostava dos mesmos livros e filmes que eu. Na época ele era apenas um jovem, talvez uns 22 anos. A bebida baixou minhas defesas e me faz falar mais do que costumava. Contei a Alípio quase toda minha história de vida. Contei-lhe vários pormenores que me sucederam desde a infância, meu primeiro amor, a morte de meus pais, e depois como conheci minha amada Leila lendo debaixo de uma flor de cerejeira. Contei-lhe como vi nosso filho adoecer e falecer sem que pudéssemos fazer nada e de como ela foi embora meses depois deixando apenas um bilhete inacabado. Contei-lhe até do tempo em que estive preso por um crime que jamais cometi.

Não caberia aqui relatar tudo o que conversamos durante aquela viagem, só digo que saí de lá com o sentimento de que havia conquistado um amigo. Ele anotou meu nome completo e eu anotei o dele. Prometi uma visita a ele quando retornasse à Lisboa, mas foi uma promessa que por razões pouco compreensíveis nunca cumpri.

Passarem-se anos até eu ver uma foto com o nome de Alípio em uma revista de literatura. Ele estava lançando seu terceiro romance e nessa altura já aglutinava em torno de si certo prestígio e sucesso. Li seu romance quase que de uma vez só. Foi então que resolvi comprar seu primeiro romance, considerado pela crítica como uma estreia grandiosa no mundo das letras. Comecei a lê-lo e a partir daí fui tomado pelo estarrecimento e incredulidade. Aquele maldito romance de estreia contava minha história entre seus parágrafos e pontos. Sim, tudo que eu havia lhe contado durante o trajeto de trem estava lá. As mortes, a separação, meus dramas pessoais espalhados entre aquelas páginas frias. O desgraçado conseguiu contar minha vida melhor que eu poderia fazer. Na hora fui tomado pela raiva. Porém, nada podia fazer contra ele. Não se tratava de um plágio já que essa história jamais havia sido publicada por outro escritor. Além disso ele mudou os nomes, o lugar e as datas dos acontecimentos e eu não tinha armas para rende-lo. Queimei o livro na lareira e segui minha vida como se nunca o tivesse lido. Era como se ele fosse meu testamento secreto, escrito pelas mãos de um desconhecido.

Porém, eu queimara o livro, não seu escritor. Então, há exatos quatro dias conversei com Alípio pela segunda vez em minha vida. A noite já caia sonolenta e não havia uma nuvem sequer no céu para cobrir a lua e as estrelas. Ouvi as batidas na porta de meu apartamento. Olhei pelo olho mágico e reconheci como por maldição a figura de Alípio. Abri a porta e ele me encarou com os olhos frios de desespero pedindo para falar comigo. Não precisávamos de apresentações e acho que no fundo ambos pressentíamos que um dia estaríamos frente a frente novamente.

Ele se sentou. Ofereci um whisky vagabundo que havia comprado na mercearia da esquina e ela aceitou virando o primeiro copo em um gole só. Enchi o copo novamente e também comecei a beber. Alípio estava com as feições severas e o olhar turvo, parecia carregado de preocupação. Ele tentou pedir perdão pelo livro. Disse que me procurou várias vezes sem êxito. Talvez fosse verdade. Andei itinerante por longos anos, até voltar para cá e me estabelecer fixamente há um ano. Disse-me que esperou também que eu o procurasse para exigir que pedisse autorização para publicar aquela história que era mais minha que dele, mas que isso nunca aconteceu.

Sua voz estava claudicante e com tons de agonia. Contou-me que convivia com essa e tantas outras culpas. Havia plagiado a obra de uma antiga paixão e cometidos outras traições de todas as ordens. Disse-me que precisava pedir perdão para acertar essa conta. Perguntei-lhe porque agora. Então ele me disse que estava com um terrível pressentimento. Tinha pesadelos e sentia-se encurralado.

- O rei morreu, mas não foi esquecido. Tudo o que fazemos uma hora vem ao sol. – Disse ele virando outro copo.

- Do que você está falando? - Indaguei, também bebendo a minha quota.

- São tantas coisas que você não entenderia. Só sinto que uma sombra paira sobre mim. Traições, mentiras, orgulho. E ainda tem essa figura desgraçada.

- Figura desgraçada?

- Sim. Ela tem me perseguido e quer acabar comigo, tenho certeza. Essa figura está sempre vestida de preto. Usa um sobretudo até às canelas e um chapéu negro de abas largas que cobre praticamente todo o rosto. Me espreita sempre de longe de modo que some antes que eu consiga alcança-lo. A vi ontem pela janela de meu quarto. Era madrugada. Eu olhei pelo vidro e ela estava lá, em pé na esquina oposta, encarando-me fixamente enquanto fumava um cigarro. Não sei se é homem ou mulher. Dizem que os anjos não possuem sexo, talvez os demônios também não.

- Acho que o demônio tem coisas mais importantes para fazer que perturbar a alma de um escritor.

- Então é alguém que quer acabar comigo. – Disse-me olhando nos fundos dos meus olhos.

Respirei e disparei:

- Já entendi. Você não veio aqui pedir meu perdão. Você apenas quer saber se não sou eu a figura que tem lhe perseguido. Qual é, poderia ter lhe procurado muito antes, não tenho motivo para fazê-lo agora. – Alípio ficou quieto por um instante.

- Preciso descobrir quem é.

- Isso se ela existir. Você anda assustado. A mente perturbada pode lhe pregar peças. Criar imagens que não existem e perigos onde não se tem.

- Duvido muito que seja o caso. Mas, uma coisa é verdade, ando bebendo muito ultimamente. Preciso manter a serenidade.

- Então acabamos por hoje?

- Sim. Poderia apenas me dar uma água gelada? – Disse-lhe que sim e fui caminhando lentamente até a cozinha para pegar a água. Abri a porta da geladeira e enchi um copo limpo primeiramente para mim. Bebi a água gelada com goles vagarosos. Depois peguei outro copo para ele e o enchi. Quando estava voltando para sala vi a porta fechando violentamente e pude ouvir os passos pesados e apressados de Alípio descendo às velhas escadas de cimento de meu prédio. Foi então que reparei que Alípio havia revirado uma estante que ficava logo à frente da mesa em que conversávamos. Da maneira, que saiu, até parece ter descoberto algo que o assustou e que nessa altura eu não poderia compreender, até porque minha mente também estava flutuando entre o álcool e a nicotina, que eu consumia desde antes da inesperada visita de Alípio.

Pois bem. Foram assim as únicas duas vezes que conversei com Alípio. Agora ele estava morto e eu estava ali entre centenas de rostos desconhecidos que queriam se despedir dele ou então ter certeza de que ele realmente morreu. Me ocorreu, então, que talvez ele pudesse guardar um segredo que não deveria revelar a ninguém e que isso poderia ser a razão de sua morte. Ou então ele só havia irritado algumas pessoas. De qualquer modo, eu não tinha participação nenhuma nisso. No fundo, nunca desejei a morte de Alípio. Pelo menos não de forma consciente e isso já me alivia do peso da consciência.

Enquanto derreto no sol, uma mulher de vestido e sapatos negros se aproxima de mim. Ela tem um perfume enigmático que não consigo decifrar, apenas apreciar. Seus lábios estão rubros como um rubi e seus cabelos pretos caem até as costas. Seus olhos estão escondidos de trás de um óculos escuro e ela segura entre os dedos pálidos e finos uma violeta vermelha.

- Olá. - Diz ela em minha direção com uma voz tenra.

- Olá. - Respondo.

- Você conhecia o falecido. – Pergunta-me.

- Apenas dos livros e você? – Retruco.

- Conheço melhor do que eu queria.

- Então meus pêsames.

- Obrigada. – Ela respira fundo e parece ficar introspectiva. Então finalmente fala novamente:

- Como dizia Ingmar Bergman “somos todos mortos insepultos”. Acho que a morte é a única garantia que temos contra o mundo. – Antes que eu pudesse concordar, a mulher sai de perto de mim e se mistura rapidamente na multidão.

Minhas costas estão suadas e meus lábios salgados. Acho que já fiquei aqui o suficiente. Me dirijo para a saída quando, com um relance de olhar, avisto do lado oposto uma figura vestindo um sobretudo negro até às canelas. Seu chapéu também negro cobre quase todo seu rosto que parece voltado para a multidão e consigo ver apenas um sopro de fumaça saindo de sua boca coberta. Por um instante penso em me aproximar. Mas essa luta não é minha. Seja lá qual fosse a dívida de Alípio, ele pagou com seu próprio sangue. A roda da fortuna às vezes trilha caminhos insondáveis.

Desabotoo o paletó. Já estou na rua. Tiro meu cantil do bolso e percebo que não há uma gota nele e me sinto aliviado de ver que estou perto de um mercado. “- Afinal, quem poderia me julgar?”. Digo para mim mesmo enquanto deslizo pela calçada com passos descompassados.

 

                                                                 Grégor Carlos Marcondes

 

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