09/09/22

O Alípio Morreu - Capítulo 10

 

Fotografia: João J. A. Madeira 

Tenho uma espinha atravessada nos dentes. Uma pedra a morder-me a sola de um pé. Tento caminhar, mas a outra perna coxeia; ensaio um sorriso, mas a língua abre-se em sulcos de sangue. Queria falar bem de ti, Alípio, mas nem um incorrigível mentiroso – como eu sou – consegue fazê-lo. Pode alguém chamar os nomes que neste momento me assaltam, a um qualquer santo que no pedestal de uma igreja se expõe? Impossível, meu caro, meu amigo, meu sacana. E, no entanto, tu foste o santo cujas vestes disfarçavam a ponta viperina da cauda do Demo.

Nem sempre foi assim. Quando jovens, tu eras o meu ídolo. A tua inteligência perante todos – até professores – a perspicácia que evidenciavas para as mais adversas situações, a tua argumentação para comigo, pobre tímido, fizeram de mim, sem que disso me apercebesse, teu súbdito, teu lacaio e teu defensor para as mais sórdidas ocorrências em que te envolvias. Admito-o agora, finalmente livre de ti, perante esta folha em que escrevo: a minha força bruta e impulsiva, a minha condição humilde e a subsequente insegurança pelo discernimento limitado, serviram como luva moldada à medida da tua mão. Não tivesse eu nascido assim, com uma mente por educar, e mais cedo, muito mais cedo, teria desconfiado.

Recordas-te – eu nunca esqueci – daquele dia em que com gestos de aflição cruzavas as pernas e me dizias estar à beira de mijar as calças? Creio ter sido aí que tudo começou. Quando te apontei o urinol público e saíste de lá minutos depois com um tipo a vociferar contra ti e a querer partir-te a cara. Eu era fiel. Sempre fui devoto da verdadeira amizade e quem lhe partiu a cara fui eu. Só quando o sujeito debandou, nariz a pingar sangue e queixo a dançar-lhe no rosto, te perguntei que se tinha passado lá dentro. E rimos como dois loucos, como dois irmãos, quando me contaste que, distraído, lhe havias mijado os sapatos. Mentias bem, Alípio. Nem os olhos ou os gestos te traíam e, conhecer-te, refinou em mim o dom que já possuía de saber mascarar a verdade.

Ao contrário de todos os jovens, nunca havia tido ídolos. Nada entendia de música, raras vezes frequentei o cinema, não gostava de futebol, o meu pai era um farrapo embebido em vinho. Eleger-te nessa condição foi, por isso, natural num rapaz que ocultava a fragilidade mental sob o fraco manto da força física. Sem que me desse conta, fizeste de mim teu protector físico e teu servo, porque subjugado ao poder do teu corpo de Adónis e à tua retórica de filósofo grego. A teu pedido, fiz recados, bati, roubei e, sem compreender, proporcionei-te encontros com garotos que, sem explicações, desejavas conhecer. Pouco mais tarde, com a chegada do tempo adulto, foi o sexo feminino que à tua volta zumbia como abelhas povoando um jardim. Tímidas, reservadas, simuladamente pudicas como sempre serão as raparigas, serviam-se de mim para a ti chegar, à mais bela flor, concedendo-me assim um efémero poder que, na minha mente obtusa, mais me fazia admirar-te.

Contigo aprendi a técnica do distanciamento, do quase desprezo à paixão que, quanto maior, mais as excitava na busca de te tocarem, de te conseguirem. Raparigas lindas, algumas delas de boas famílias, influentes, endinheiradas. E eu não compreendia a tua atitude perante moças como a Tixa – recordas-te dela? Agora já não, eu sei – uma mulher belíssima, uma simpatia de voz sedosa e cristalina como um fresco rio. Ainda hoje, quando a recordo, evoco instintivamente as palavras do Gedeão, que então lia: “…é nova, desenxovalhada, tem perna gorda, bem torneada. Ferve-lhe o sangue de afogueada, saltam-lhe os peitos na caminhada…”. Era assim, a Tixa. Foi talvez a que mais te desejou e aquela a quem mais esperança – somente esperança – deste. Para, inesperadamente, te casares com a feia e desconchavada Almerinda, que ninguém, nem eu, sabia quem fosse. Intrigado, investiguei. E descobri a ponta ainda pouco consistente daquela que viria a ser a tua linha de conduta: as influências recebidas e projectadas, o dinheiro, a reputação. Já eras alguém bem posicionado quando morreu. De que morreu ela? Pois! Será melhor que não mintas sobre o corpo morto cuja autópsia conseguiste evitar e que só assim te permitiria continuar na senda da fama e do dinheiro. Poderias até, se assim entendesses, voltar para a Tixa. Voltaste? Não, ainda que possas ter provocado nela uma réstia de esperança. Mas ninguém aceita de bom grado descer do patamar a que se alcandorou (mesmo não sendo essa a única razão). Porém… Devias ter sido mais cauteloso. Ou estarias já tão “do outro lado”, que não te apercebias de que é capaz uma mulher despeitada? Quem a avisou da tua morte? Como estava já um grupo de pessoas perante o teu cadáver? Quem as alertou? Acredita, Alípio, todo o ser humano mente. E só eu o admito.

Depois, seguiste a trajectória que havias delineado. E quanto mais tu subias, mais eu me perdia na depressão de me ver só e não conseguir singrar na vida. Até que me reencontraste e me deste a mão. A mão que me recuperou no dinheiro, na auto-confiança fermentada no álcool, nos sonhos impossíveis inalados nas drogas. Recuperaste-me, sem que eu cuidasse que me afundavas. Porque precisavas de mim. Para algo que nada tinha que ver com os livros que sem dificuldade publicaste e vendeste, e te colocou no pedestal de uma cultura cimentada nas ideias dos outros que, indecentemente, plagiavas. Recordas-te da Cristina? Do Grégor, ainda que de um modo mais subtil? Da Luísa que, camuflada na pele de um qualquer António, te entregava textos de gente que apelidavas como cobarde? Nunca te ocorreu que os heróis podem nascer num impulso da cobardia? Em verdade te digo, Alípio: tivesses-me tu roubado na pouca capacidade intelectual, muito próxima da estupidez, e há muito estarias na condição em que agora te encontras.

Estúpido, sim. É como a mim próprio classifico. Por em ti ter acreditado quando me disseste quereres dedicar-te à pintura no seguimento da escrita e que, a teu pedido, fotografasse crianças – rapazes – cujas fotos te entregaria; quando me manifestaste vontade de, por simples entretenimento e mesmo sem qualquer curso, comandares um corpo de escutas; quando, devoto assumido a um ponto que até aí desconhecia, quiseste tornar-te catequista. Cérebro toldado pela droga, barriga refastelada no vinho, interpretei todos esses desejos como caprichos naturais e legítimos num homem que, podendo ter tudo pelo poder que adquirira, pretendia agora descer à vida comezinha da gente vulgar. E compreendi-te por isso. Até àquele dia. Aquele dia em que, talvez pela primeira vez e por eventual desnorte de uma excitação descontrolada, negligenciaste os cuidados e permitiste, sem que o soubesses, que eu te visse. A ti; e a ele. Um dos rapazes que eu havia fotografado, sem os andrajos com que o captara, com a mesma sujidade com que o descobrira. Esbugalhavam-se-lhe os olhos de medo, tremiam-lhe as carnes sob o calor das mãos que não desejava. E eu, cobarde agoniado, desprezível ser com cérebro de escaravelho, afastei-me sorrateiro e confuso. Em casa, vomitei a droga, vomitei o vinho e só não consegui expelir o ódio que, a ti, em mim crescia como num filme acelerado. E, em esforço, compreendi tudo. O repudiar de mulheres que fingias amar para que te aproximassem de homens. Inspectores, juízes, padres, ministros, eram os teus alvos na sociedade de topo. Precisavas deles para as tuas aldrabices literárias, para outros enredos que nunca desvendei, para, com uns, poderes alcançar outros. Que te dessem fama, que te livrassem de obstáculos, numa inquebrável teia que, a determinada altura, já nada conseguia rasgar. No início, pagarias com o teu corpo; mais tarde, com dinheiro; depois, com a tua própria influência. E, sem querer, como que com um estalar de dedos, revi aquele dia do urinol público e a razão pela qual o rapaz vociferara contra ti: tu eras nojento, asqueroso, hediondo, todos os adjectivos que possam definir o que de mais podre existe no Homem. Tu eras a espinha atravessada nos dentes, a pedra entalada no sapato. Tão longe uma da outra que, aliviando uma, teria de suportar a restante. Em quanta maldade se dividiria o teu corpo, Alípio?

O sol tinha-se já posto quando, decidido, retirei da gaveta da cozinha o facalhão de serrilha com que arranjava o peixe. Cada dente do utensílio, agora arma, seria o rosto inocente das tuas vítimas que, pela última vez, engolirias. Vesti o casaco ao qual descosi o fundo do bolso interior e, como bainha de espada, forcei a que o forro dissimulasse a faca. Sem outra coisa em mente senão tu, meu caro, meu amigo, meu sacana, dirigi-me a tua casa. Receber-me-ias. Como sempre me recebeste.

Pela calada da noite, vi-me junto ao pequeno portão do jardim da tua moradia de um só piso. Estranhamente, a minha mão não tremia quando o dedo enluvado apontou à campainha. Que não toquei. No escuro varrido pelos ocasionais faróis de um carro que passava, vislumbrei um corpo tombado sobre os ladrilhos da porta de entrada. Com uma serenidade que em mim não reconhecia, não evitei, porém, que o coração encetasse tão descompassada corrida. Algo me dizia ser teu o corpo que ali jazia. Enfiei a mão por entre o gradeamento de ferro forjado e experimentei o trinco que, com um estalido, se abriu à pergunta que interiormente fazia. E cuja resposta me chegou na confirmação do que pensara. Baixinho, com alguma suavidade até, pronunciei o teu nome. Silêncio. Com a ponta do meu sapato toquei o teu, insensível ao toque. Acocorei-me e levemente te sacudi. E não tive dúvidas: alguém se antecipara a mim. Ou, finalmente, o Deus que tão diferentemente fabrica os homens, renegara uma das suas defeituosas obras. Ergui-me e, com uma frieza desusada, preparei-me para sair. Mas quando as costas eram já o único obstáculo entre mim e ti, voltei-me e olhei-te pela última vez. Posição fetal. A mesma em que dormem as crianças na espera de nascer. A este mundo onde todas chegam com o dom da mentira. Que só eu admito possuir.

 

                                                                            João J. A. Madeira 

4 comentários:

  1. Ah, João, que deleite ler o teu capítulo! Já esperava um texto brilhante, como tudo o que escreves, e a cada linha envolves mais o leitor! Este conto promete!!
    Parabéns, meu amigo, quanta honra sinto em estar num mesmo conto contigo!

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  2. Imitado por antecipação.
    Odeio essa sensação:)))

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  3. :) Abraço, Pedro Coimbra. E obrigado por nos acompanhar

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