10/01/23

Estendais - Capítulo 7



David Raul -  4º Esq.

 

Minha cabeça doía novamente. Era a quarta vez essa semana. Tentava tirar um cochilo com o corpo todo esticado no sofá-cama Drago, que era um dos únicos móveis que guarneciam meu decadente apartamento. A falta de dinheiro me acompanhava há algum tempo, quase como que uma sombra do meu espectro fatigado. Morei longos dois anos em um carro FIAT que havia herdado do meu velho ainda na Itália. Quando surgiu a chance de vir morar nesse antigo prédio e aproveitei para vende-lo. Com o dinheiro comprei esse sofá, provavelmente fabricado nos anos 60, a mesa de madeira da cozinha, a geladeira vermelha que acolhe minhas garrafas, algumas roupas e o televisor da sala. O violão e o quadro da Cláudia Cardinale pendurado na parede desgastada que agora encaro, enquanto penso no nada que trouxe comigo. São as únicas coisas que consegui comprar. Mas para todos que me visitam, digo que sou um minimalista convicto e que ter coisas materiais demais enlouquece a alma, “minha verdadeira riqueza é espiritual” assevero com eloquência e todos acreditam. Aliás, sou um mentiroso hábil e ardiloso. Mentir sempre me foi um grande talento, ao lado da lábia. Porém, esse talento ainda não me levou longe e hoje estou aqui morando nesse prédio velho habitado por pessoas singulares.

Por falar em meus vizinhos, escuto o tilintar do salto alto dos sapatos da moradora do apartamento de cima. Quando estou com dor de cabeça o barulho parece aumentar. Eu a conheço pouco, só sei que gosta de usar saltos, mora com uma gata de estimação e tem um ótimo gosto para perfume. Sim, sinto o aroma dele toda vez que subo a escadaria para meu apartamento (tenho medo desse elevador velho e sinistro e acho que ela também). Sei que o perfume é dela por que o senti quando a cumprimentei na reunião que fizemos com os vizinhos, na semana passada.

Não sei que horas são. Não tenho relógio. É noite e estou dominado pelo tédio e não consigo nem cochilar. Eu sei que tenho nicotina e álcool para me fazerem companhia. Mas beber aumentaria minha dor de cabeça e também minha angústia. Faz lembrar de meu pai. Bêbado compulsivo, que não parava em emprego algum porque chegava alcoolizado para trabalhar. Minha mãe vivia dizendo que o abandonaria, porém, por ironia da vida morreu antes dele (infarto fulminante). Depois que ela morreu, ele mergulhou ainda mais na bebida e acabou morrendo atropelado por um ônibus. É uma história um tanto medonha e eu não gosto dela. Por isso invento outra quando perguntam sobre meus pais. Sou bom em mentir, lembra? Mas antes de qualquer coisa, esqueci de dizer que nasci em Nápoles, meu pai era italiano e minha mãe portuguesa, o que me fez querer parar aqui. Voltando, quando eu era adolescente adorava ler e meu livro favorito era “Os maias”. Talvez pelo fato de ter ganho ele da Betina, a menina mais encantadora que já conheci. Todos os meninos do liceu gostavam dela, mas ela gostava realmente de conversar comigo, pois me achava engraçado e adorava as histórias mirabolantes que eu inventava. Um dia eu disse que gostava de ler e ela me deu o livro, pois segundo ela era muito chato e não iria terminar de o ler. Sorte a minha que gostei tanto do livro que peguei emprestado uma parte da história e a reconstruí de meu jeito. Depois de adulto, vendi a casa do meu velho, peguei o FIAT dele e fui me aventurar sem destino. Passei por incontáveis cidades de diversos países, e sempre que perguntavam de meus pais dizia que minha mãe havia fugido para a américa do sul com um revolucionário e que meu pai, tomado por um momento de insanidade, havia desferido um tiro no próprio peito, deixando-me aos cuidados de meu avô. Ninguém questionava minha versão.

Minha cabeça parece estar melhorando. Escuto um bater apressado na minha porta. Digo que já vou. Abro a porta. É o morador do outro nº. 4. Ele está mais pálido e agitado que o normal.

- Desculpa lhe incomodar a essa hora da noite. Mas estou passando em todos os apartamentos para saber se alguém viu minha cachorra. Você a conhece não? Tróia, está sempre passeando comigo e brincando com a menina Sara.

- Sim, é claro que conheço adorável criatura. Mas, o que sucede, ela sumiu?

- Infelizmente é o que parece. Cheguei em casa perto das 19h e ela não estava em lugar algum. Procurei por todo o apartamento e estou perguntando a todos os vizinhos, mas ninguém a viu! O que vou fazer sem meu amado animalzinho?

- Calma, ela não iria sumir assim, deve ter alguma explicação. Você perguntou para a mãe da Sara?

- Tentei, mas não tem ninguém no apartamento. Bati inúmeras vezes, porém ninguém me atendeu.

- Realmente estranho. Porém, eu não vi a cadelinha hoje em parte alguma, tampouco falei com Sara e a mãe.

- Então continuarei a procura! Vou ver se elas voltaram, talvez Sara tenha visto ela! Pobre Tróia.

- Boa sorte. Estarei de olhos atentos e caso eu descubra alguma coisa lhe comunico imediatamente.

- Muito obrigado. - Disse ele saindo com os passos apressados para o elevador.

Entrei para o apartamento e tomei um copo de água gelado. O sumiço repentino da cadela me intrigara. Talvez fosse aquele homem do Mercedes Benz preto que costuma circundar o prédio. Dizem que ele segue meu vizinho oposto. Dívida, talvez. Os vizinhos comentam muitas coisas, mas nada foi provado.

Estou agora sem sono. Visto minha camisa preta e saio para ver se acho o animal perdido nalgum corredor ou escada, mas começo a empreitada sem lograr êxito. Saio para a parte externa do prédio e piso em alguma coisa estranha que parece se despedaçar debaixo dos meus pés. Está escuro e me aproximo para conseguir enxergar. Então percebo que é o corpo inerte e agora despedaçado de uma pomba. Olho para o lado e percebo que há outra pomba morta logo perto dessa, com as formigas já dançando sobre sua carcaça.

Será que alguém está matando pombas? Mas quem? Caminho mais um pouco para ver se encontro algum sinal de Tróia, porém sem sucesso. Minha dor de cabeça volta com tudo e resolvo retornar de minha missão noturna. Alguém há de encontrar a cachorrinha e tudo será explicado, digo para mim mesmo.

Volto para meu apartamento. Está calor. Lavo o rosto na água fria da pia do banheiro. Então escuto novamente um bater na porta. Dessa vez mais leve e tranquilo. “Deve ser Pedro para dizer que encontrou a cachorra”. Abro a porta e sou tomado por uma bela e inebriante surpresa. A imagem de Antônia sorrindo para mim com seus lábios candentes. Conheci Antônia em uma exposição do museu. Troquei olhares com ela e senti uma atração desmedida desde que a notei. Usei meu talento de puxar assunto e conversamos um pouco enquanto caminhávamos pela galeria. Menti para ela que eu era escritor prestes a lançar seu primeiro livro, que tinha um contrato fechado com uma grande editora que leu o esboço original e achou promissor, porém eu precisava entregar o texto final dentro de alguns meses, mas estava sem inspiração para escrever e buscava na arte algum respiro criativo. Convidei-a para um café e desde então passamos a ter encontros ocasionais. Todavia, fazia mais de um mês que não a via e sua inesperada visita encheu meu coração de alegria.

- Olá, que surpresa. – Disse, desajeitado.

- Olá, incomodo?

- Jamais, é que realmente não esperava tão maravilhosa visita noturna.

- Desculpa, senti sua falta e como você não tem telefone e eu estava sozinha e por perto pensei em conhecer seu apartamento.

- É claro, por favor entre, mas não se decepcione, meu apartamento é praticamente vazio, você sabe, sou minimalista e não me apego com coisas materiais. – Falei isso abrindo a porta e deixando aquela mulher que tanto me atraia entrar no meu mais modesto e decante recinto. Antônia tinha os cabelos negros que caíam até as costas e usava um vestido florido e uma sandália preta de salto alto que destacava a tatuagem de uma de suas panturrilhas torneadas e seus lindos pezinhos. Sim eu gostava de pés e os de Antônia eram dos mais lindos que havia deslumbrado.

Ela então percorre os olhos pelo recinto e dá um sorriso.

- Então assim que é um apartamento de um escritor?

- Decepcionada? Como disse, não tem nada demais, além do essencial.

- Não seja bobo. Eu gostei.

Antônia então se aproxima de mim e trocamos um beijo quente, que enrosca nossas línguas. Sinto o hálito dela se misturar ao meu. Depois ela olha nos meus olhos e diz com um riso malicioso que sentiu saudades. Ela diz que está com sede e com calor. Eu também. Pego as duas últimas garrafas de cerveja da geladeira e começamos a tomar, enquanto conversamos. Depois, ligo a televisão em um canal qualquer. Deitamos no sofá-cama. As luzes da tv lançam um tom azulado sobre o corpo delineado de Antônia. Lentamente, abro o decote do vestido dela e acaricio o bico de seus seios. Ela fecha os olhos enquanto sinto-os enrijecerem em meus lábios. Faço carinho neles até ela cravar as unhas compridas em meus cabelos e puxar minha cabeça para perto dela. Nos beijamos como amantes proibidos que têm pouco tempo antes de se separarem. O Beijo dela me incendeia. Trocamos carícias e fazemos amor ali mesmo. Ficamos com os corpos entrelaçados, grudados, unidos contra o mundo. Depois, tomamos banhos juntos, agarrados, enquanto a água escorre por entre nossos lábios e dentes. Saímos do chuveiro, pego a toalha e seco cada pedacinho do seu corpo, enquanto beijo levemente sua pele cor de canela, seus dedinhos, suas canelas, seus joelhos delicados.  

Estou exausto e Antônia também, deitamos novamente, o corpo dela jogado sobre o meu. Acaricio os fios finos dos cabelos dela com os dedos. Adormeço e sonho que estou preso no elevador do prédio. De repente ele desaba e eu acordo com o coração acelerado. Antônia não está mais comigo. Deve ter ido embora com o nascer do sol, sem eu perceber. Ela era assim, como o vento, ninguém a prendia e passava pelos lugares sem se deixar ficar definitivamente em nenhum. Eu sabia disso, porque também era assim.

Abro a janela, acendo um cigarro enquanto apoio os cotovelos no parapeito. Então escuto a vizinha de cima chorar. É a segunda vez que a escuto chorar essa semana. Lembro então de Pedro e de sua busca pela cachorra. Escovo os dentes, lavo o rosto e vou até o apartamento dele em busca de novidades. Bato diversas vezes, mas ninguém atende. Já estou desistindo, quando vejo a ponta de um papel que desponta pela soleira da porta. Olho para os lados e percebo que não há ninguém para flagrar meu ato de curiosidade. Puxo o que na verdade é um envelope. Abro-o e dentro dele há apenas um pedaço de papel escrito com batom:

“Preciso ir ter contigo urgente! Sabes onde me encontrar. Apressa-se”.

Guardo o papel novamente no envelope e devolvo para baixo da porta. Caminho novamente para meu apartamento. Sabe que as coisas nesse prédio começam a ficar interessantes?

 

                                                                      Grégor Carlos Marcondes

  

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