Joaquim
Imagem de M P por Pixabay |
Sempre soubera que Maria era fraca,
mas que o caso do jovem padre a fosse afectar daquela maneira, jamais
imaginara. Afinal, já tinham sido tantos os incautos a cair na sua
excentricidade aparentemente maléfica… é certo que, possivelmente, nenhum outro
chegara a saber o verdadeiro propósito do assédio de que tinha sido alvo,
porque assédios verdadeiramente não eram, mas que raio, não era caso para se
desesperar até à morte. E Maria, também porque é que tinha de tomar as dores do
rapaz? Se o tivesse esquecido, como havia feito com os outros, não tinha sabido
do acidente e consequente morte e tudo teria continuado na mesma: ela a caçar
presas durante o dia, para à noite, os dois se deleitarem com os seus segredos
de alcova.
Agora, da jovem fogosa e
apaixonada, nada mais restava que os pequenos resquícios de beleza que ainda
vislumbrava naquele corpo magro, quando às escondidas a vigiava. Sabia que ela
não o queria ver mais, mas ele sentia essa necessidade, como uma obrigação.
Quando a conhecera era tão jovem, tão inexperiente das coisas da vida, que só
aquele palco e o xaile no gingar do microfone podiam tê-lo levado ao engano. Talvez
a culpa de tudo aquilo, de toda a situação por que Maria passava agora, fosse
dele. Incentivara a frieza e a ausência de carácter, que logo lhe reconhecera,
em proveito próprio, sem sequer se preocupar com os danos que toda aquela
clandestinidade poderia provocar numa mente de estrutura frágil.
Por isso a ajudou, para expurgar a culpa que
ainda não tinha a certeza se sentia. Procurou ajuda profissional e deixou-a
continuar em sua casa. Antes não o tivesse feito!
Lili, com a sua postura arejada e
jeito falsamente meigo de ser, fê-lo apaixonar-se. Em pouco tempo, absorveu
toda a sua atenção e disponibilidade para se dedicar a outra pessoa. Os
olhares, os toques inusitados, as palavras quase codificadas… tudo isso, Maria
observava com um sofrimento profundo. Até que um dia, fingiu estar bem e foi
para a casa que herdara. Sim, Joaquim tinha a certeza que Maria fingira.
Ninguém muda de um dia para o outro
o que lhe foi cimentado desde a raiz. Maria até poderia iludir-se a si própria,
convencer-se que era capaz de enveredar pelo caminho altruísta que planeava com
extremo afinco, mas um dia viria em que a construção desmoronaria. Porque ela
não era assim, ela não tinha sido feita assim. Ela tinha sido feita para ser
servida e não para servir. E nesse dia, ele tinha de lá estar. Já que não tinha
estado quando Maria pedira socorro, em silêncio.
Envolvera-se numa paixão maldita
que o cegara por completo. Paixão essa que ainda o consumia… mas já não lhe
tirava a lucidez, como acontecera até então.
Lili era o demónio em forma de
mulher. Mulher sensual é verdade, mas demoníaca na mesma proporção.
Enfeitiçara-o com o prazer da carne e ainda mais com o delírio da mente, nas
alvoradas em que juntos ascendiam aos céus. Durante dias e principalmente
noites fizera-o esquecer Maria, a sua doença e a sua necessidade de protecção.
Quando por momentos a lembrava e tentava chamar a atenção de Lili para o facto
de Maria se encontrar no quarto ao lado, esta logo o tranquilizava com a maior
desfaçatez, dizendo que passara por lá antes de vir ao encontro dele e que a
coitadinha dormia o sono dos anjos. De seguida enrolava-o em luxúria e de imediato,
Joaquim entrava na rota do torpor em que vivia por aqueles dias.
Até ao momento em que, a altas
horas de uma madrugada, num esgueirar de olhos se viu confrontado com a
expressão desesperada de Maria, pela porta entreaberta. Olhou para Lili e viu o
riso pérfido soltar-se-lhe em sonoras gargalhadas. Percebeu, naquele instante, o
que Lili tinha andado a fazer: usara-o para enlouquecer Maria, pois sabia que
Maria o amava. O pior é que também ele já a amava irremediavelmente a ela:
Lili!
Maria ainda ficou mais uns dias em
casa de Joaquim, depois de ele mandar Lili embora, mas quando saiu foi para não
mais voltar.
Estranhamente, ou talvez não,
Joaquim começou a preocupar-se com Maria, por entremeio aos sonhos acordados e
adormecidos que tinha com Lili. E o seu tempo tornou-se algo sem nexo, que o
atormentava cada vez mais. Entre as idas e vindas do hospital, vigiava Maria, mas
não procurava Lili. Ainda não percebia o porquê do seu comportamento, mas
naquele momento, nem o seu próprio compreendia.
No entanto, mais cedo do que previra,
veio o esclarecimento. Lili esperava-o, no consultório, numa manhã ao chegar
para trabalhar.
- Bom dia, meu amor!
- O que é que fazes aqui?
- Então, não gostaste da surpresa? -
Lili exibia um sorriso irónico - Não tens vontade de recordar os velhos tempos?
Oh, que pena… tinha umas coisinhas para te sussurrar ao ouvido.
- Lili, sai daqui!
- Já? Mas ainda não te disse o que
vim cá fazer…
- Não quero saber, sai!
- Pensei que me amavas…
- O que é que isso interessa? Tu
não me amaste.
- Hum, hum… aí é que tu te enganas.
Interessa e muito! É aborrecido sentirmos na pele o mal que fizemos aos outros,
não é?
- Mas tu enlouqueceste ou quê? Do
que é que estás para aí a falar?
- Do futuro padre… Raimundo.
Lembras-te?
- Esse é o padre que morreu em
consequência de um atropelamento.
- Que tu e ela mataram, queres tu
dizer!
- O quê? Mas onde raio foste buscar
essa ideia?!
- Eu sei de tudo, Joaquim. Sei que
ela, a tua amiguinha, fez com que ele se apaixonasse e os dois esfregaram-lhe
na cara o gozo de que tinha sido alvo.
- Isso não faz com que tenhamos
tido alguma coisa a ver com a sua morte.
- É como se o tivessem matado com
as próprias mãos, não vês?
- Não, não vejo… mas o que é tu
tens a ver com isso? Amava-lo?
- Amar? – Lili soltou a sonora
gargalhada, aquela que ele tão bem conhecia. – Oh meu querido, amar é para os
fracos.
- Então… não entendo…
- O Raimundo era de uma família
riquíssima. Essa riqueza ia ser toda minha… se aquela… se tu e aquela cabra não
tivessem estragado o meu plano.
- Ele era padre.
- Quase padre! Ainda não era padre,
nem nunca seria. Estava quase a fazê-lo desistir da ideia, quando ela apareceu.
Joaquim, atónito com tais
revelações, deixou-se cair na cadeira atrás da secretária. Mas Lili ainda não
tinha terminado e aproximou-se, olhando-o no fundo dos olhos.
- É claro que já relatei os
acontecimentos à polícia, numa versão cheia de pormenores bem requintados.
Afinal, manipulação é rotina para mim, como tu bem sabes!
Joaquim levantou-se rapidamente da
cadeira para tentar agarrar Lili, que saía apressada, com um sorriso no rosto,
mas foi interrompido pela recepcionista:
- Sr. Doutor, estão ali dois
agentes da polícia judiciária que querem falar consigo.
- Peça-lhes para esperarem cinco
minutos e depois mande-os entrar…
Naquele dia, as primeiras páginas
de todos os jornais vespertinos exibiam o mesmo título:
MÉDICO SUICIDOU-SE NA CASA
DE BANHO DO HOSPITAL
Luísa
Vaz Tavares
Fiuuuuu!!! Quase perdi o fôlego.
ResponderEliminarMas que grande "pedalada"!!!
Fantástico!
O Joaquim andava numa montanha russa emocional... eheheh
EliminarObrigada!
Bom ritmo narrativo e construção de diálogos.
ResponderEliminarIdeia muito original.
Bjs
Obrigada, Ana Tapadas.
EliminarContinuação de boa quarta-feira!
Um conto de tirar o fôlego
ResponderEliminarObrigada pela carinhosa visita
Um abraço
Espero que continue a gostar. Obrigada.
EliminarAbraço carinhoso!
Gostei muito
ResponderEliminarObrigada, Francisco!
EliminarContinuação de boa quarta-feira.
Gostei bastante e aproveito para desejar uma bom Domingo.
ResponderEliminarAndarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Obrigada, Francisco!
EliminarContinuação de boa quarta-feira.
Que montanha russa!!
ResponderEliminarBoa semana
O Joaquim andava mesmo numa montanha russa emocional... e suicidou-se.
EliminarBoa quinta-feira, Pedro!
Ritmo narrativo interessante...
ResponderEliminarObrigada!
EliminarContinuação de boa quarta-feira.