Elvira
Imagem de S. Hermann & F. Richter por Pixabay |
-
Passport please!
Depois
de recolher a escassa bagagem e cumprir as rigorosas e intermináveis
formalidades de entrada no país, Elvira abandonou o Aeroporto
Internacional de Lhasa. A esperá-la no exterior, encontrava-se o
guia que iria acompanha-la durante os 8 dias que duraria a visita.
Sem
prestar grande atenção ao rapaz e ao movimento frenético que a
rodeava, quase desprezando a oferta da tradicional Kha-Tag, atirou-se
literalmente para o interior do táxi que os aguardava rumo à
cidade, capital do Tibete.
Depois
de acomodada no banco traseiro, o guia, sentado ao lado do motorista,
indicou - Shangri-La Lhasa Hotel.
Mal
acabou de se instalar no quarto que tinha reservado, Elvira deixou
que o seu corpo se entregasse de forma abandonada a um longo e
relaxante banho de imersão.
Antes
mesmo de desfazer por completo a sua bagagem, vestiu-se e decidiu
sair para um pequeno passeio.
De
novo na rua, e acompanhada do guia que se desfazia em mesuras,
dedicou-se a admirar os tradicionais edifícios, deixando-se aos
poucos envolver naquela atmosfera estranha, impregnada de cores,
tradições e aromas.
Sem
notar, os passos de ambos levaram-nos até junto do Palácio Potala,
onde o guia, sempre excedendo-se em simpatia, a convidou a descansar
um pouco enquanto esperavam pelo pôr-do-Sol, espetáculo que
garantia ser único no mundo.
Não
ficou desiludida, o momento foi mágico, algo a que nunca tinha
assistido e que sentiu desejo de que viesse a repetir-se todos os
restantes dias da sua vida. Agradeceu ao guia e retomaram o passeio.
Enquanto
absorvia e se deixava absorver, absolutamente deslumbrada, por aquele
incomensurável e grandioso espetáculo que a cercava, começou
lentamente a recordar os últimos acontecimentos, e tudo o que a
tinha levado a iniciar uma abrupta e radical mudança de vida.
Na
verdade, toda a sua vida, desde que se conhecia, decorrera a um ritmo
alucinante. Os acontecimentos que marcaram todos os momentos
importantes da sua existência revestiam-se tanto de
imprevisibilidade como de inconstância, de alguma frivolidade e de
completa falta de programação. O acaso e o caos regiam a sua vida
desde o dia em que nasceu, moldando-lhe um caráter pragmático,
desapegado das coisas mundanas, profano. O mesmo acaso e caos regeram
também a sua vida sentimental e amorosa, tendente exclusivamente
para a obtenção do prazer imediato, sem nunca estabelecer qualquer
vínculo de afeto.
Passou-se
assim desde o fim da adolescência, quando a curiosidade a levou a
descobrir o prazer, através das carícias e do contacto físico com
Leonor.
A
sua “irmã de leite” herdara da mãe uma aptidão excecional para
a prática de intimidades, as quais aperfeiçoava consigo própria e
potenciava quando se encontrava nos braços de Elvira, levando-a a
atingir o êxtase e algo mais, indefinível, indecifrável mas que
não tinha o poder de a deixar confortável consigo própria.
Com
a fase da juventude chegaram os contactos masculinos, efémeros mas
sempre muito intensos. Contudo, aquele desconforto parecia não
querer abandona-la, por mais homens que conhecesse e fingisse amar.
Certo
dia, já adulta e na posse das propriedade que herdara, decidiu
abruptamente tomar uma decisão radical: terminar de uma cutilada com
a relação unicamente sexual que mantinha com Alberto, o último
protagonista das suas “maratonas” sexuais e... perder-se no
mundo.
Vendera
uma enorme propriedade que possuía em Nelas e com a ajuda e
aconselhamento do seu gestor bancário, aplicara parte do produto da
venda em ações que lhe garantiam um rendimento muito confortável e
a possibilidade de concretizar um sonho antigo; viajar, conhecer
países, culturas, paisagens. Era esta a sua forma de entender a
liberdade e de não estar sujeita a viver num espaço único e a
conhecer pessoas que esperavam dela sentimentos que não possuía.
Talvez
esta sua forma de ser estivesse relacionada com o modo como veio ao
mundo e como foi criada e educada até à idade adulta. Estes
pensamentos fizeram-na acordar e reavivar memórias, transportando-a
a uma tenebrosa noite de trovoada em que, muito abraçada a Leonor, a
sua “irmã de leite”, recebera a revelação acerca da forma como
fora parar ao palacete de Mm Blanche.
Recordava
essa noite tenebrosa e as revelações que Leonor lhe fizera em modo
de discurso direto, como se ainda ouvisse nitidamente o som da sua
voz entre-cortado pelo ribombar do trovões. Recordava o calor
aconchegante do corpo de Leonor e o sabor do entrelaçado das suas
pernas nas dela. Na escuridão do quarto, quando a trovoada se
afastou e terminou o relato da história que Leonor ouvira contar a
sua mãe, sentiu uns lábios húmidos unirem-se voluptuosamente aos
seus. Ainda trémula, esperou pelo que viria em seguida. O que veio
foi estranho, foi estonteante, foi irrecusável, foi consentido e
correspondido. Aquela noite, gravada na sua mente e no seu corpo a
vários fogos, repetiu-se com uma frequência e uma intensidade
indescritíveis. De súbito, e sem motivo estruturado, terminou de
forma tão abrupta como o ribombar do primeiro trovão da primeira
noite.
Elvira
fora abandonada à nascença, à porta de um prostíbulo numa fria
noite de Dezembro decorria o ano 1970.
Quem
cometeu o terrível ato de abandono, premeditou que aquela seria a
hora de maior afluência ao local, pelo que, provavelmente não
demoraria a ser encontrada. Efetivamente, a pequena Elvira fora
encontrada por um distinto senhor, que visitava regularmente a casa
de Mm Blanche, no preciso momento em que as suas cordas vocais
iniciaram um estrepitoso choro.
Quando
a dona do palacete - mulher garbosa já entrada na idade, mas ainda
altiva, detentora de uma personalidade férrea e um auto-domínio que
os anos de experiência no "ramo" lhe conferiam – abriu a
porta, encontrou o seu cliente habitual segurando um cesto de verga
que transportava uma ternurenta bebé.
Deu-se
um momento de estupefação e de indecisão, que fizeram Mm Blanche
ficar como que pregada à soleira da porta, de olhos muito abertos,
fitando ora o Sr. Conde, ora a pequena criança.
-
Então Mm Blanche, vai querer que a pobre criança enregele?
Permite-nos que entremos?
Como
que acordada à força de um pesadelo, Mm Blanche afastou-se dando
passagem ao Sr. Conde e à sua protegida.
-
Mas Sr. Conde, pode explicar-me o que se está a passar?
Sem
prestar atenção à pergunta formulada, o Conde do Monte a Nelas
passou a entrada, poisou o cestinho sobre uma poltrona e aliviou-se
dos abafos que lhe mantinham o já velho corpo aquecido. Depois,
pegando a pequena Elvira nos braços, chegou-a perto da luz mortiça
de um aplique de parede e perguntou como que afirmando; é linda, não
é?!
Mm
Blanche, ainda insegura da situação, acercou-se um pouco mais e
confirmou.
-
Sim, de facto é uma linda bebé. Mas, a quem pertence, Sr. Conde?
Lentamente
o velho conde virou-se, e de olhar penetrante e arguto concluiu:
-
Esperava que fosse a senhora a esclarecer-me essa questão. Não será
obra de alguma das suas “pupilas”?
-
Não estou a perceber a lógica da sua dúvida senhor conde, pelo
facto de nos encontrarmos numa casa de prostituição, não quer
dizer que sejamos pessoas desumanas, capazes de abandonar uma
recém-nascida a um destino tão desfavorável.
-
Bom, assim sendo, crendo na veracidade das suas palavras, tenho um
enorme favor a pedir-lhe.
-
Se estiver ao meu alcance, pode estar certo que atenderei ao seu
pedido Sr. Conde.
-
Estará certamente, Mm Blanche. Como poderá imaginar, ficar-lhe-ia
muito grato se tomasse a seu cargo a responsabilidade de criar esta
menina. Estou certo que lhe saberá proporcionar o conforto e
educação apropriados.
-
E, para suportar todas as despesas com a alimentação e educação
da pequena, providenciarei amanhã mesmo com o meu advogado, o
usufruto de uma das minhas propriedades de Nelas, que será
administrado por si e passará para a posse da menina, logo que ela
atinja a maioridade.
Perplexa
e sem reacção, Mm Blanche não ousa sequer contrariar a vontade do
Sr. Conde. Chama imediatamente uma das meninas e ordena-lhe que
recolha a bebé, lhe dê banho e procure com urgência uma ama que a
amamente. Ao pegar no cestinho onde Elvira fora encontrada, Mm
Blanche descobre um pequeno papel onde um nome se encontra
garatujado: Elvira Clara das Neves.
Uma
hora depois, chega ao palacete de Mm Blanche, acompanhada por uma das
“meninas”, uma anafada e andrajosa mulher, transportando no colo
uma bebé quase a completar um ano de idade.
Mm
Blanche reconheceu-a de imediato. Tratava-se de uma antiga
“funcionária” da casa que um ano antes, tinha abandonado a
profissão para se juntar com o Zé-Naifas; um ladrãozeco de vielas
que lhe prometera vida de princesa e lhe oferecera fome e tareia sem
parar, acabando por a abandonar, prenhe e sem poiso minimamente
decente onde pudesse criar o ser que lhe crescia no ventre.
Mm
Blanche recebeu-a com rispidez e clarificou logo ali, de uma penada,
a situação; precisava que amamentasse Elvira. Em troca,
oferecia-lhe alimentação e uma dependência no piso superior do
palacete, quase nunca utilizada. Zaldemira - era o nome da ex-rameira
- aceitou a oferta de imediato sem pestanejar. Quando já se
encaminhava para a sua nova morada, Mm Blanche perguntou-lhe o nome
da criança que trazia ao colo.
-
Chama-se Leonor… é uma menina, linda como o Sol.
-
Miss Elvira ???
Como
que acordada de um sonho pelo chamamento, Elvira abriu os olhos. O
Sol tinha desaparecido por completo, restando no céu uma ténue
névoa em tons vermelho-sangue.
Levantou-se
com a ajuda do seu guia e dirigiram-se de novo ao hotel.
Nos
lábios de Elvira bailava um sorriso estranhamente luminoso que não
passou despercebido ao seu guia, levando-o a questiona-la se estaria
tudo bem.
Elvira
alargou o sorriso e respondeu, como estando a responder a uma
pergunta que carregava desde que se conhecia: Estou ótima! Há
poucos dias decidi abandonar a vida que levava, as pessoas e os
lugares que conhecia e… perder-me no mundo. Percebo agora que
afinal buscava encontrar-me comigo própria e com o mundo. Este é o
meu verdadeiro primeiro dia de vida. E abrindo os braços declarou
bem alto: Acabei de nascer! Sou eu, Elvira!
Elvira…
Bartolomeu Frederico
Muito bem!
ResponderEliminarParabéns
Obrigado @lbino. Ainda bem que gostou. ;)
EliminarAgradeço também a Luísa Tavares a imagem que encabeça o texto. Uma escolha muito no contexto e que só por si é mais de metade do conto. Obrigado. ;)
ResponderEliminarFormalidades em aeroportos é o que me espera a partir de amanhã.
ResponderEliminarAs formalidades nos aeroportos chineses são o cúmulo.
Eliminar