@Helmut Newton |
Amélia
Introdução
Ah como era
belo o mar que sempre a chamava, as ondas profundas, a impoluta areia branca
antes de ser tocada! Todas as manhãs a desvirginava com as mãos afundadas nos
pequenos grãos, enquanto sorvia em golfadas os eflúvios da maré. Todos os dias
deixava na praia um pouco dela, quem sabe para exorcizar todos os sentimentos
que sempre a devastavam.
Amélia
nascera na capital, mas de certo modo nunca fora verdadeiramente citadina.
Fizera o liceu com boas notas e até chegara a metade de um curso de Letras mas
sempre se sentira uma solitária.
Precisava de
afundar os olhos na natureza para se sentir inteira, viva e capaz de todas as
façanhas. Vivia na cidade como uma prisioneira, encerrada entre prédios e
forçada a conviver com quem nada lhe dizia.
Um dia
decidira conhecer uma pequena vila costeira e apaixonara-se completamente.
Adorava o sotaque cerrado das gentes da terra, o bulício da chegada dos barcos
de pesca, os sons do mar a quebrar na areia, os passeios matinais mal o dia
despontava. A cidade ficava lá atrás cheia de tudo aquilo que mais detestava e
lhe pesava nos ombros.
A cidade
Tinha-lhe
dado e tirado tanto essa cidade! Fora lá que conhecera Pedro. Ainda hoje não
sabia se era uma boa ou má recordação. Ele nunca percebera quão errado era o
que nutria por ela. E ela fora tonta, verdade se diga, quando não lhe travara
logo de início aqueles sentimentos. Mas Pedro era um companheiro interessante,
um conversador que também sabia guardar silêncios, também ele um amante de
música e da natureza. Conhecera-o através de uns amigos que fizera quando
estudara na faculdade e descobrira com ele algumas paixões comuns. Sentia que
tinha um amigo para a vida, alguém que compreendia as suas idiossincrasias.
Infelizmente nunca se apercebera, ou não o tinha querido fazer, de que Pedro
sentia por ela mais do que uma calorosa amizade. Até ao malfadado dia em que
tudo acontecera.
Ainda hoje se
lembrava do choque sentido, não tanto por si, mas pelo amigo que defraudara.
Como eram
maravilhosos os dias que passavam a tentar pilotar o pequeno Cessna Skyhawk! A
adrenalina a correr nas veias, o coração como um louco, a concentração
misturada ao riso da vitória por conseguirem uma manobra mais arriscada. Ambos
loucos pela aviação, muitas vezes se tinham abraçado envoltos pelo enorme
prazer sentido, de cada vez que cruzavam o céu.
Se ela
tivesse percebido tudo o que despertava em Pedro, teria tentado afastar-se ou
mesmo confessado a sua grande paixão. Mas não! Fora preciso Pedro sofrer uma
humilhação para perceber quão distante o seu sonho estava da realidade.
Ele nunca lhe
perdoara, nem a rejeição, nem a louca decisão que tomara ao casar com Leonor.
Pobre Leonor que sempre o amara e ao mesmo tempo a desprezava por não o ter
feito.
Ela também
nunca se perdoara. E esse era um estigma que guardara em si.
Nunca mais
voltara às aulas de aviação, como se elas tivessem sido as causadoras de todo o
mal.
A vila
Seguira
outros caminhos. Nem o curso de Letras, nem a aviação a tinham prendido. Um por
nada lhe dizer, outro pela força das circunstâncias. De certa maneira, ainda
trazia na pele aquela amizade com Pedro e a falta dos risos e das palavras
tontas enquanto estudavam, era uma recordação penosa que a perseguia.
Agarrara-se a um misto de sentimentos, a uma revolta que fazia dela as delícias
de quem a conhecia. Ninguém percebia que debaixo da capa guerreira, existia uma
mulher frágil a pedir socorro. É sabido que uma mentira dita muitas vezes se
torna verdade. Era assim com ela. Perder o amigo à conta de um tremendo
equívoco deixara rudes marcas.
A vila era o
seu talismã, o local onde conjurava todos os males, o local onde ao mesmo tempo
todas as paixões eram possíveis.
Percebia que
Pedro achara que nunca se poderia ter interessado pelo sexo oposto. No entanto,
isso nunca fora inteiramente verdade, pelo menos até conhecer Lili.
Lili tinha
uma vantagem em relação a todos e a todas as pessoas que conhecera. Era de uma
impudência arrasadora, sem com isso se preocupar. De certa forma, o amoralismo
dela livrava Amélia de todos os pecados. Podia ser quem era, resguardar-se de
qualquer sentimento que quebrasse o escudo que há muito erguera e proteger-se
assim das deceções que via nos outros.
Vira o pai e
a mãe cruzarem uma vida de infelicidade agarrados a convenções e jurara a si
mesma levar a existência sob o lema carpe diem. Na realidade,
apenas aquela amizade quase fraternal com Pedro a tinha desviado um pouco desse
caminho. O catastrófico resultado da mesma era mais um ponto a favor da sua
teoria.
Lili era o
que era, muito simplesmente. Devastadora, sensual, mestre nos devaneios
sexuais, um vulcão a despertar outro. Com ela não precisava pensar,
questionar-se, meditar no certo e no errado. Com ela a chave era viver
intensamente cada segundo, sem esperar o dia de amanhã.
Os homens que
tivera, porque tinham existido, sempre lhe cobravam algo mais. Amélia queria
ser livre nas tardes de sol da vila piscatória, correr pela areia de mão dada
com Lili, ou gritar com ela no suor da cama. Na volúpia dos sentidos, a palavra
«amor» era apenas uma palavra. Nada de compromissos, de projetos futuros ou
amarras. A paixão não requeria género. Era apenas uma explosão, um apocalipse
que a purgava de todas as dores. Não necessitava que Lili a amasse, mas somente
que a desejasse nas tardes em que se encontravam. O amor levaria ao ciúme, à
posse e a tudo o que ela mais detestava por se achar incapaz de o suportar.
A vida pelo
meio
Afinal, nem
tudo seria assim tão fácil. Abdicar de uma companhia para a vida, apesar de
todas as vantagens, também teria consequências e Amélia sabia-o. Mas seguira o
seu rumo levando a pose de guerreira mesmo quando ruía por dentro. As lágrimas
que fazia na cidade, ia chorá-las na vila, salgando ainda mais o mar que amava.
O lado negro
de tudo, atingia-a muitas vezes depois que decidira ser parteira.
Quando mais
tarde tinha decidido enveredar por essa profissão, regera-se por algo que muito
tinha a ver com ideais incutidos. Mas a verdade era muito diferente de um
idílico mundo imaginado.
Muitas vezes
tinha trazido a felicidade a quem esperava exausta o milagre da vida. Esses eram, sem dúvida, os momentos de júbilo
de que se orgulhava.
Mas nem
sempre era assim. Certos acontecimentos eram uma sombra negra que porfiava em
não se separar dela. Agarrada à pele, trazia a memória de um local numa rua de
Lisboa, onde tantas mulheres tinham desembocado e com elas mais uma vida
perdida. Tantos dramas tinham embatido nela a tentarem devastar-lhe a
confiança!
Nunca fizera
juízos de valor sobre o assunto e nem sequer era religiosa, mas era impossível
não ser afetada por tantas histórias de vida que com ela se tinham cruzado.
Incrivelmente
fora num hospital da capital que voltara a rever Pedro. Leonor tinha dado à luz
com a sua ajuda, um dos filhos do casal. Quando os vira, ficara estranhamente
amedrontada perante o que a vida deles fizera. Ambos gordos, anafados, mas como
se debaixo de toda aquela gordura balofa, existisse um poço de raiva e de
amargura que só precisasse de um pouco de força para rebentar e explodir-lhe na
cara.
Em Pedro, os
olhos tinham mirrado à medida que a vida cobrara dividendos e um breve esgar
vincava-lhe os lábios. Mal lhe dirigira a palavra e o ressentimento
aprofundava-lhe as rugas, como se a presença dela o fizesse amarrotar. Já
Leonor, perdera toda a beleza que lhe conhecera na fatídica tarde em que ele a
tinha pedido em casamento. Fora com um olhar de ódio que recebera a sua ajuda
durante o parto. Achava mesmo, que se não fossem as circunstâncias e o
proverbial feitio de se acomodar, e Leonor teria mesmo pedido o seu
afastamento.
Final
Após tantos
anos, era ali junto ao mar, que encontrava alguma paz. Sem afetos, sem amarras,
numa solidão pensada e assumida.
Cada onda era
um sussurrar que a levava em cadência, cada grito de gaivota era também seu, na
lembrança dos muitos que se permitira naquela terra.
Rompera quase
todos os laços, mesmo que não pudesse dizimar as recordações. Nada sabia de
quem cruzara a sua vida e era preferível assim.
A última vez
que vira Lili, não tinham recolhido ao quarto. Ela apenas lhe sorrira e naquele
seu jeito impudente e desprendido dissera que ia ter com Ernesto, um tolinho,
como lhe chamava, mas que lhe apetecia por ser tão volátil. E as paixões, dizia
ela, queriam-se assim, a consumirem toda a lenha. Depois ela pulava fora, antes
que tudo esfriasse demasiado. Amélia aceitara perfeitamente. Não se tratara de
amor, só da aparência do mesmo e tal como as marés, havia que aceitar o
inevitável.
Curiosamente
chegara a conhecer Ernesto e os seus devaneios, mais a sua insuportável
tendência para namoriscar a torto e a direito. Também ele um dia viera à
procura de Lili, que, entretanto, já tinha uma nova paixão. Naqueles estranhos
acasos que a vida proporciona, tinham descoberto que a tinham tido em comum.
Após alguns diálogos à beira-mar e a certeza de que não valia a pena usar nela
os seus esquemas de encantamento, Ernesto tinha conseguido ser uma espécie de
amigo. Ele era prosaico e dogmático, um lutador desse lá por onde desse, o que
lhe facilitara sem dúvida o percurso de vida e isso era algo que apreciava
nele.
Desse modo,
ia aproveitar o convite que ele lhe fizera há uma semana.
Hoje quando o
sol se pusesse romaria a Lisboa. Ernesto ia estrear-se no Finalmente Club e ela
sentia uma enorme curiosidade em perceber como é que alguém como ele se iria
sair.
De um certo
modo, a sua coragem era uma espécie de motivação para ela.
Se um
namoradeiro incorrigível conseguia ser travesti, quem sabe o que ela ainda
poderia ser?
Afinal nem
tudo estava perdido.
Margarida
Piloto Garcia
Um texto muito bem construído, completo, recheado de emoções fortes, acessíveis somente a alguns "escolhidos"!
ResponderEliminarAmélia dos olhos doces.
ResponderEliminarA minha tia que partiu demasiado cedo.
Boa semana
Depois desta pequena ausência na visita aos blogs amigos, venho desejar uma boa semana.
ResponderEliminarKique
https://caminhos-percorridos2017.blogspot.com/
Muito obrigada pelo convite que só agora vi, num dos meus blogs.
ResponderEliminarDepois escrevo.
Beijinhos
:)
Ana
Uma excelente narrativa.
ResponderEliminarGostei imenso, parabéns.
Margarida, um bom fim de semana.
Beijo.
Que linda história! Vim te deixar votos de um ótimo 2020!
ResponderEliminarSaint Michael the Archangel defend us from combat.🙏🏼 Be our shield against visible and invisible enemies.🙏🏼
ResponderEliminar