Fotografia: Horst Neumann |
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Estou!
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Está, D. Adelaide? Fala Manuela Sequeira.
Adelaide
quedou-se muda. A doutora Manuela nunca lhe tinha telefonado, embora se
tratasse da médica da Clarinha e esta já tivesse estado duas ou três vezes em
casa dela a brincar com o Átila. Mas era sempre a empregada do consultório que
ligava, a marcar as consultas, ou a dar este ou aquele recado.
-
D. Adelaide? Ainda aí está?
-
Sim, doutora Manuela, desculpe. Mas que se passa?
-
Gostaria de ter uma conversa consigo. Pode vir a minha casa, no sábado,
aproveitando a boleia do seu cunhado padeiro? E traga a Clarinha! Eu depois
levo-as de volta.
-
A sua casa? Não estou a entender… tem a ver com os resultados dos exames da menina?
Já os tem?
-
Tenho, sim. Acalme-se, D. Adelaide! Posso já adiantar-lhe que ela não corre
perigo de vida. Mas, enfim, os resultados não são bem aquilo que esperava. Além
disso, gostaria de ter uma conversa consigo, à volta de uma chávena de chá, uma
conversa de mulher para mulher, bem diferente das que se têm num consultório.
Se pudesse, no sábado, seria ótimo.
-
Sim, com certeza, doutora.
Embora
o entusiasmo de Clarinha pela visita a confortasse, Adelaide não mais
descansou, até ao dia em que cruzou, hesitante, o pesado portão da Casa das
Tílias. A simpatia de Manuela aliviou um pouco a sua timidez de mulher humilde,
enquanto a filha foi abraçar o Átila bonacheirão. Ficaram alguns minutos no
jardim, as duas mulheres a observarem a criança e o cão, Manuela a enfatizar o
bem que fazia à Clarinha aquela alegria e a atividade física, à procura da bola
do Átila. Adelaide reparava que a filha, de facto, se movimentava mais enérgica
do que o costume, embora não prescindisse das muletas.
Entraram,
depois, em casa. Manuela quis examinar a Clarinha, fez algumas perguntas. Em
seguida, deu-lhe um refresco, enquanto fazia um chá para ela e Adelaide. As
duas mulheres sentaram-se então à mesa da sala, enquanto a menina foi de novo com
o Átila para o jardim.
A
sós com a médica, Adelaide pôs-se de novo acabrunhada, sem tocar no chá, nem
nas bolachas. Finalmente, perguntou:
-
Diga-me, doutora, o que se passa?
Manuela
pousou a chávena no pires, respirou fundo e respondeu:
-
Como lhe disse, os resultados dos exames não foram o que eu esperava. Tinha-lhe
dito que a Clarinha superaria os seus problemas de locomoção na adolescência, mas
infelizmente o problema é mais grave. Peço desculpa por lhe ter dado certas
esperanças.
-
O que quer dizer? Que a doença dela é incurável?
-
Tudo indica que sim.
-
Valha-me Deus!
-
Lamento, D. Adelaide. A Clarinha ficará sempre limitada nos seus movimentos.
Terá de fazer tratamentos, durante toda a sua vida, tanto medicamentosos, como
fisioterapias. E… enfim, poderá não ter uma esperança de vida muito longa…
De
cabeça baixa, Adelaide tapou as faces, onde as lágrimas começaram a correr. Engolindo
as suas, Manuela ofereceu-lhe um lenço e acrescentou:
-
Não desespere, D. Adelaide! A Clarinha é uma criança alegre e cheia de força de
vontade. Se ela se aplicar nos exercícios, apesar das dores que lhe possam
surgir, poderá fazer uma vida praticamente normal. Além disso, é inteligente.
Deve continuar os estudos, a fim de, por exemplo, se formar professora, uma
profissão que poderá exercer, mesmo que algum dia… esteja confinada a uma
cadeira de rodas.
-
Valha-me Deus - repetiu Adelaide.
Manuela
deu-lhe tempo para digerir as informações, enquanto dava mais um gole no seu
chá, para se acalmar, ao contrário de Adelaide que, depois de limpar as
lágrimas, se quedou, pensativa. Por fim, falou:
-
Pois, se é assim que tem de ser, assim será. Agora, os estudos… não vai ser
fácil.
-
Mas importante. Está fora de questão ela exercer um tipo de trabalho que exija
esforço físico. Por outro lado, deve estar em condições de ganhar o próprio
pão, em vez de ficar à espera de um homem que a sustente. Não estou a dizer
isto apenas devido à sua deficiência física. Os tempos estão a mudar, D.
Adelaide, muitas mulheres se tornam independentes.
-
Sim, eu sei. Não é como nós, antigamente. Mas, para ser professora, ela teria
de estudar muito, não é verdade?
-
Bem, foi um exemplo. Com o quinto ano do liceu, ela já poderia trabalhar em
qualquer escritório.
-
Mesmo assim, doutora Manuela. Vai ser muito difícil pagar-lhe os livros. Bem
sabe que não tenho dinheiro. E o pai dela também…
Interrompeu-se,
aflita, baixando novamente a cabeça. Manuela sabia porquê. Adelaide nunca dera
informações sobre o pai da sua filha, limitara-se a dizer, no início, que ela
não tinha pai, ficando a médica sem saber se ele estava vivo ou morto, ou se a
própria Adelaide sabia do seu paradeiro. Com aquelas palavras, ditas num impulso,
ela provara saber, pelo menos, que ele estava vivo. Manuela aproveitou a
ocasião:
-
Por isso a chamei aqui, D. Adelaide, para termos uma conversa muito séria. É o
futuro da sua filha que está em jogo e eu só posso ajudar se souber o que se
passa. Não se trata apenas dos estudos, a Clarinha tem de ser muito
acompanhada, haverá altos e baixos na sua doença, nem tudo correrá bem. Será
tarefa pesada para uma pessoa sozinha e, tendo ela um pai, seria aconselhável
que ele assumisse as suas responsabilidades.
Adelaide
começara novamente a chorar:
-
Mas ele não pode, doutora, não tem dinheiro. Deixou um emprego bom, teve pouca
sorte na vida, um desgosto…
-
Não se trata apenas de dinheiro. Também, e acima de tudo, de apoio moral,
alguém com quem a senhora possa dividir os problemas, as responsabilidades e as
canseiras. E seria igualmente um conforto para a própria Clarinha. Ela
conhece-o?
Adelaide
hesitou, mas acabou por dizer:
-
Por acaso, conheceu-o há dias. Mas não sabe que se trata do pai.
-
O que a impede de saber? Ele é casado?
Adelaide
limpava novamente as lágrimas. Parecia lutar consigo própria e acabou por
retorquir irritada:
-
Não insista, doutora! Nada lhe posso dizer, apenas que se trata de um homem que
teve azar na vida. Mas tem bom coração. E adora crianças, é muito carinhoso com
elas.
De
repente, por uma associação de pensamentos que nem sempre sabemos explicar,
Manuela recordou a imagem vista há dias, a imagem de um homem a abraçar
ternamente um petiz de quatro anos, a quem dera rebuçados. E, perdida nessa
recordação, exalou o nome:
-
António?
Dissera
aquilo em reflexão, mais para si própria do que para a sua interlocutora.
Porém, quando deu por si, Adelaide fixava-a de olhos dilatados, assustada. Pelos
vistos, acertara em cheio.
-
O que sabe sobre o António, doutora?
A
bem dizer, nada sabia, apenas uma suspeita se lhe formava na cabeça. Uma
suspeita que aliás lhe dizia ser a Clarinha apenas uma pequena parte da
história. Poderia Adelaide dar-lhe a confirmação? Mas como atuar? Se revelasse a
sua incerteza, bombardeando a mulher com perguntas, ela fechar-se-ia de vez.
Por outro lado, saberia ela toda a verdade? Decidiu-se por essa dúvida e passou
à ofensiva:
-
Sei o suficiente para desconfiar que a D. Adelaide não sabe nem metade da
missa.
Adelaide
baixou de novo a cabeça e murmurou:
-
Sei sim, doutora, sei tudo.
-
Sabe tudo?
Ergueu
o olhar:
-
Ora, a doutora pensa mesmo que histórias dessas se possam manter em segredo
aqui nas aldeias? Só mesmo quem for muito ingénuo… - acrescentou, com um
sorriso triste: - Como os homens. Os homens são como crianças.
-
E a D. Adelaide nunca o confrontou com a verdade?
-
Nunca o quê?
-
Nunca lhe disse que sabia?
-
Por acaso, disse, sim. Quando comecei a notar que a Clarinha tinha cada vez
mais dificuldades em se mexer, tinha ela cinco anos, senti-me, num certo dia,
tão triste e sozinha que, quando ele apareceu em minha casa com aquele seu ar
despreocupado, não me aguentei e despejei tudo.
Estupefacta,
Manuela contrapôs:
-
E continua a alimentar-lhe o jogo, incluindo manter a Clarinha na ignorância?
Adelaide
encolheu os ombros:
-
A culpa não é dele, doutora. Foi um grande desgosto de amor que o pôs assim. Um
desgosto com uma dessas galdérias que se metem com os alemães da base!
Manuela
teve de se segurar. Esqueceria Adelaide que ela própria fora casada com um
desses alemães? O facto de o casamento não ter dado certo não diminuía a
ofensa. Mas forçou-se a acalmar-se. Adelaide era uma mulher simples e humilde, cuja
cabeça, naquele momento, só tinha lugar para a sua própria história. Não valia
a pena entrar em questiúnculas.
Respirou
fundo, enquanto desviava o olhar para a janela da sala. Viu a Clarinha sentada
na relva, o cão deitado a seu lado. Ela fazia-lhe festas e, embora Manuela não
a ouvisse, reparou que falava. Que estaria ela a dizer ao Átila? A contar-lhe
histórias? Ou a falar das suas preocupações, dos seus medos, das suas angústias
Manuela
sorriu. O Átila era o ouvinte ideal: não lhe fazia perguntas incómodas, não a
censurava, não a julgava, nem tão-pouco troçaria dela, por mais disparates que
dissesse.
Virou-se
novamente para a sua interlocutora e declarou:
-
D. Adelaide, não sei se os homens são como crianças, ou se apenas o fingem. Mas
uma coisa é certa: eles não são crianças! Sei que fomos ensinadas a
obedecer-lhes e a protegê-los, mas há limites. Quem não sofreu desgostos de
amor, na juventude? E, por muito que o António tenha sofrido, que culpa tem a
D. Adelaide disso? Que culpa tem a Clarinha, ou as outras crianças inocentes
que ele gerou? Não se trata de bonequinhos bonitos a quem se dá rebuçados e se
faz uma festinha, de vez em quando. São seres humanos que podem sofrer uma vida
inteira, ao constatarem que o pai não os assumiu. Porque, em casos destes, as
crianças vêm a saber, mais cedo ou mais tarde. No caso da Clarinha, é ainda
mais grave, tratando-se de uma menina fragilizada, que necessita de muito
apoio. O António terá de assumir a sua responsabilidade!
-
Mas ele não tem dinheiro, coitado.
-
E a D. Adelaide, tem?
-
Eu não, doutora.
-
Porque insiste então em desculpá-lo, em deixá-lo de fora desta história? Concentre-se
em si, nas suas necessidades e nas da sua filha! Nós mulheres também temos de
pensar em nós. Se eu não o tivesse feito, estava ainda em Lisboa, a sofrer, num
casamento infeliz. Mesmo para fugir à violência, é preciso coragem para
enfrentar a própria família e a sociedade, que se recusam a aceitar que uma
mulher deixe o marido.
Adelaide
estava de novo muito acabrunhada:
-
Eu… não sei se sou capaz de lhe dizer certas coisas…
-
Se preferir, falo eu com ele.
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Mas aí ele vai zangar-se comigo, por eu lhe ter contado.
-
Olhe, D. Adelaide, se ele se zangar, é porque não a merece. Nem a si, nem à
Clarinha!
Por
uns momentos, Adelaide parecia vexada. Porém, quando ergueu a cabeça,
lançou-lhe um olhar resoluto:
-
Tem razão, doutora. Quantas vezes choro por me sentir tão sozinha e
desamparada? E me amaldiçoo, ao pensar que a Clarinha tem um pai, que pode não
ser rico, mas é saudável, sempre para trás e para a frente na sua bicicleta.
Bem podia empregar alguma dessa força a cuidar da filha!
Manuela
sorriu:
-
É assim mesmo, D. Adelaide! Na verdade, nunca entendi porque havemos nós, a
quem chamam o sexo fraco, de insistir em proteger e desculpar aqueles que se
consideram o sexo forte.
Adelaide não percebeu bem estas palavras, mas, se a doutora Manuela as dissera, elas teriam a sua razão de ser.
Cristina
Torrão
👏👏👏👏👏
ResponderEliminarMuito bom capítulo!!!
Ganhou um grande fôlego o conto e deu muitos passos em frente. Gostei muito. Parabéns
ResponderEliminarMuito obrigada às duas.
ResponderEliminarGostei do desenvolvimento,
ResponderEliminarhaverá mais esperança para a Clarinha:)