04/02/22

Na Fragilidade do Barro - Capítulo 5

 

Fotografia: Horst Neumann

- Estou!

- Está, D. Adelaide? Fala Manuela Sequeira.

Adelaide quedou-se muda. A doutora Manuela nunca lhe tinha telefonado, embora se tratasse da médica da Clarinha e esta já tivesse estado duas ou três vezes em casa dela a brincar com o Átila. Mas era sempre a empregada do consultório que ligava, a marcar as consultas, ou a dar este ou aquele recado.

- D. Adelaide? Ainda aí está?

- Sim, doutora Manuela, desculpe. Mas que se passa?

- Gostaria de ter uma conversa consigo. Pode vir a minha casa, no sábado, aproveitando a boleia do seu cunhado padeiro? E traga a Clarinha! Eu depois levo-as de volta.

- A sua casa? Não estou a entender… tem a ver com os resultados dos exames da menina? Já os tem?

- Tenho, sim. Acalme-se, D. Adelaide! Posso já adiantar-lhe que ela não corre perigo de vida. Mas, enfim, os resultados não são bem aquilo que esperava. Além disso, gostaria de ter uma conversa consigo, à volta de uma chávena de chá, uma conversa de mulher para mulher, bem diferente das que se têm num consultório. Se pudesse, no sábado, seria ótimo.

- Sim, com certeza, doutora.

Embora o entusiasmo de Clarinha pela visita a confortasse, Adelaide não mais descansou, até ao dia em que cruzou, hesitante, o pesado portão da Casa das Tílias. A simpatia de Manuela aliviou um pouco a sua timidez de mulher humilde, enquanto a filha foi abraçar o Átila bonacheirão. Ficaram alguns minutos no jardim, as duas mulheres a observarem a criança e o cão, Manuela a enfatizar o bem que fazia à Clarinha aquela alegria e a atividade física, à procura da bola do Átila. Adelaide reparava que a filha, de facto, se movimentava mais enérgica do que o costume, embora não prescindisse das muletas.

Entraram, depois, em casa. Manuela quis examinar a Clarinha, fez algumas perguntas. Em seguida, deu-lhe um refresco, enquanto fazia um chá para ela e Adelaide. As duas mulheres sentaram-se então à mesa da sala, enquanto a menina foi de novo com o Átila para o jardim.

A sós com a médica, Adelaide pôs-se de novo acabrunhada, sem tocar no chá, nem nas bolachas. Finalmente, perguntou:

- Diga-me, doutora, o que se passa?

Manuela pousou a chávena no pires, respirou fundo e respondeu:

- Como lhe disse, os resultados dos exames não foram o que eu esperava. Tinha-lhe dito que a Clarinha superaria os seus problemas de locomoção na adolescência, mas infelizmente o problema é mais grave. Peço desculpa por lhe ter dado certas esperanças.

- O que quer dizer? Que a doença dela é incurável?

- Tudo indica que sim.

- Valha-me Deus!

- Lamento, D. Adelaide. A Clarinha ficará sempre limitada nos seus movimentos. Terá de fazer tratamentos, durante toda a sua vida, tanto medicamentosos, como fisioterapias. E… enfim, poderá não ter uma esperança de vida muito longa…

De cabeça baixa, Adelaide tapou as faces, onde as lágrimas começaram a correr. Engolindo as suas, Manuela ofereceu-lhe um lenço e acrescentou:

- Não desespere, D. Adelaide! A Clarinha é uma criança alegre e cheia de força de vontade. Se ela se aplicar nos exercícios, apesar das dores que lhe possam surgir, poderá fazer uma vida praticamente normal. Além disso, é inteligente. Deve continuar os estudos, a fim de, por exemplo, se formar professora, uma profissão que poderá exercer, mesmo que algum dia… esteja confinada a uma cadeira de rodas.

- Valha-me Deus - repetiu Adelaide.

Manuela deu-lhe tempo para digerir as informações, enquanto dava mais um gole no seu chá, para se acalmar, ao contrário de Adelaide que, depois de limpar as lágrimas, se quedou, pensativa. Por fim, falou:

- Pois, se é assim que tem de ser, assim será. Agora, os estudos… não vai ser fácil.

- Mas importante. Está fora de questão ela exercer um tipo de trabalho que exija esforço físico. Por outro lado, deve estar em condições de ganhar o próprio pão, em vez de ficar à espera de um homem que a sustente. Não estou a dizer isto apenas devido à sua deficiência física. Os tempos estão a mudar, D. Adelaide, muitas mulheres se tornam independentes.

- Sim, eu sei. Não é como nós, antigamente. Mas, para ser professora, ela teria de estudar muito, não é verdade?

- Bem, foi um exemplo. Com o quinto ano do liceu, ela já poderia trabalhar em qualquer escritório.

- Mesmo assim, doutora Manuela. Vai ser muito difícil pagar-lhe os livros. Bem sabe que não tenho dinheiro. E o pai dela também…

Interrompeu-se, aflita, baixando novamente a cabeça. Manuela sabia porquê. Adelaide nunca dera informações sobre o pai da sua filha, limitara-se a dizer, no início, que ela não tinha pai, ficando a médica sem saber se ele estava vivo ou morto, ou se a própria Adelaide sabia do seu paradeiro. Com aquelas palavras, ditas num impulso, ela provara saber, pelo menos, que ele estava vivo. Manuela aproveitou a ocasião:

- Por isso a chamei aqui, D. Adelaide, para termos uma conversa muito séria. É o futuro da sua filha que está em jogo e eu só posso ajudar se souber o que se passa. Não se trata apenas dos estudos, a Clarinha tem de ser muito acompanhada, haverá altos e baixos na sua doença, nem tudo correrá bem. Será tarefa pesada para uma pessoa sozinha e, tendo ela um pai, seria aconselhável que ele assumisse as suas responsabilidades.

Adelaide começara novamente a chorar:

- Mas ele não pode, doutora, não tem dinheiro. Deixou um emprego bom, teve pouca sorte na vida, um desgosto…

- Não se trata apenas de dinheiro. Também, e acima de tudo, de apoio moral, alguém com quem a senhora possa dividir os problemas, as responsabilidades e as canseiras. E seria igualmente um conforto para a própria Clarinha. Ela conhece-o?

Adelaide hesitou, mas acabou por dizer:

- Por acaso, conheceu-o há dias. Mas não sabe que se trata do pai.

- O que a impede de saber? Ele é casado?

Adelaide limpava novamente as lágrimas. Parecia lutar consigo própria e acabou por retorquir irritada:

- Não insista, doutora! Nada lhe posso dizer, apenas que se trata de um homem que teve azar na vida. Mas tem bom coração. E adora crianças, é muito carinhoso com elas.

De repente, por uma associação de pensamentos que nem sempre sabemos explicar, Manuela recordou a imagem vista há dias, a imagem de um homem a abraçar ternamente um petiz de quatro anos, a quem dera rebuçados. E, perdida nessa recordação, exalou o nome:

- António?

Dissera aquilo em reflexão, mais para si própria do que para a sua interlocutora. Porém, quando deu por si, Adelaide fixava-a de olhos dilatados, assustada. Pelos vistos, acertara em cheio.

- O que sabe sobre o António, doutora?

A bem dizer, nada sabia, apenas uma suspeita se lhe formava na cabeça. Uma suspeita que aliás lhe dizia ser a Clarinha apenas uma pequena parte da história. Poderia Adelaide dar-lhe a confirmação? Mas como atuar? Se revelasse a sua incerteza, bombardeando a mulher com perguntas, ela fechar-se-ia de vez. Por outro lado, saberia ela toda a verdade? Decidiu-se por essa dúvida e passou à ofensiva:

- Sei o suficiente para desconfiar que a D. Adelaide não sabe nem metade da missa.

Adelaide baixou de novo a cabeça e murmurou:

- Sei sim, doutora, sei tudo.

- Sabe tudo?

Ergueu o olhar:

- Ora, a doutora pensa mesmo que histórias dessas se possam manter em segredo aqui nas aldeias? Só mesmo quem for muito ingénuo… - acrescentou, com um sorriso triste: - Como os homens. Os homens são como crianças.

- E a D. Adelaide nunca o confrontou com a verdade?

- Nunca o quê?

- Nunca lhe disse que sabia?

- Por acaso, disse, sim. Quando comecei a notar que a Clarinha tinha cada vez mais dificuldades em se mexer, tinha ela cinco anos, senti-me, num certo dia, tão triste e sozinha que, quando ele apareceu em minha casa com aquele seu ar despreocupado, não me aguentei e despejei tudo.

Estupefacta, Manuela contrapôs:

- E continua a alimentar-lhe o jogo, incluindo manter a Clarinha na ignorância?

Adelaide encolheu os ombros:

- A culpa não é dele, doutora. Foi um grande desgosto de amor que o pôs assim. Um desgosto com uma dessas galdérias que se metem com os alemães da base!

Manuela teve de se segurar. Esqueceria Adelaide que ela própria fora casada com um desses alemães? O facto de o casamento não ter dado certo não diminuía a ofensa. Mas forçou-se a acalmar-se. Adelaide era uma mulher simples e humilde, cuja cabeça, naquele momento, só tinha lugar para a sua própria história. Não valia a pena entrar em questiúnculas.

Respirou fundo, enquanto desviava o olhar para a janela da sala. Viu a Clarinha sentada na relva, o cão deitado a seu lado. Ela fazia-lhe festas e, embora Manuela não a ouvisse, reparou que falava. Que estaria ela a dizer ao Átila? A contar-lhe histórias? Ou a falar das suas preocupações, dos seus medos, das suas angústias

Manuela sorriu. O Átila era o ouvinte ideal: não lhe fazia perguntas incómodas, não a censurava, não a julgava, nem tão-pouco troçaria dela, por mais disparates que dissesse.

Virou-se novamente para a sua interlocutora e declarou:

- D. Adelaide, não sei se os homens são como crianças, ou se apenas o fingem. Mas uma coisa é certa: eles não são crianças! Sei que fomos ensinadas a obedecer-lhes e a protegê-los, mas há limites. Quem não sofreu desgostos de amor, na juventude? E, por muito que o António tenha sofrido, que culpa tem a D. Adelaide disso? Que culpa tem a Clarinha, ou as outras crianças inocentes que ele gerou? Não se trata de bonequinhos bonitos a quem se dá rebuçados e se faz uma festinha, de vez em quando. São seres humanos que podem sofrer uma vida inteira, ao constatarem que o pai não os assumiu. Porque, em casos destes, as crianças vêm a saber, mais cedo ou mais tarde. No caso da Clarinha, é ainda mais grave, tratando-se de uma menina fragilizada, que necessita de muito apoio. O António terá de assumir a sua responsabilidade!

- Mas ele não tem dinheiro, coitado.

- E a D. Adelaide, tem?

- Eu não, doutora.

- Porque insiste então em desculpá-lo, em deixá-lo de fora desta história? Concentre-se em si, nas suas necessidades e nas da sua filha! Nós mulheres também temos de pensar em nós. Se eu não o tivesse feito, estava ainda em Lisboa, a sofrer, num casamento infeliz. Mesmo para fugir à violência, é preciso coragem para enfrentar a própria família e a sociedade, que se recusam a aceitar que uma mulher deixe o marido.

Adelaide estava de novo muito acabrunhada:

- Eu… não sei se sou capaz de lhe dizer certas coisas…

- Se preferir, falo eu com ele.

- Mas aí ele vai zangar-se comigo, por eu lhe ter contado.

- Olhe, D. Adelaide, se ele se zangar, é porque não a merece. Nem a si, nem à Clarinha!

Por uns momentos, Adelaide parecia vexada. Porém, quando ergueu a cabeça, lançou-lhe um olhar resoluto:

- Tem razão, doutora. Quantas vezes choro por me sentir tão sozinha e desamparada? E me amaldiçoo, ao pensar que a Clarinha tem um pai, que pode não ser rico, mas é saudável, sempre para trás e para a frente na sua bicicleta. Bem podia empregar alguma dessa força a cuidar da filha!

Manuela sorriu:

- É assim mesmo, D. Adelaide! Na verdade, nunca entendi porque havemos nós, a quem chamam o sexo fraco, de insistir em proteger e desculpar aqueles que se consideram o sexo forte.

Adelaide não percebeu bem estas palavras, mas, se a doutora Manuela as dissera, elas teriam a sua razão de ser.


                                                                                              Cristina Torrão

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