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| Por prilfish from Vienna, Austria - Mafra, CC BY 2.0, h ttps://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=71716377 |
Adriano foi o primeiro a
chegar ao Convento de Mafra. Chegou ao fim da tarde, cansado. Naquele enorme
recinto da entrada, com turistas a vaguear e a tirar fotografias, ergueu, num
impulso, as mãos ao céu e agradeceu a Deus por o ter guiado até ali, são e
salvo.
E
deu-se conta do insólito: já não se lembrava da última vez que tinha rezado.
Nem durante a doença, nem, depois, na morte de Paula, o tinha feito, tão revoltado
estava com um Deus que interrompia a vida de uma mulher ainda nova, uma mulher
dedicada à família, que nunca tinha feito mal a ninguém. E agora, sem quase dar
conta, erguera as mãos, numa oração.
Teria
aquilo algum significado?
De
ossos e músculos moídos, sentou-se num dos degraus da entrada e tirou a garrafa
de água da mochila. Depois de alguns goles, perguntou-se se teria sido a Paula,
lá no céu, a erguer-lhe as mãos. Bem possível…
Vieram-lhe
as lágrimas aos olhos. Mas, pela primeira vez, em muitos meses, não se sentiu
sozinho. Deixou-se embrenhar naquela sensação, de haver alguém que olhava por
ele e lhe desejava felicidade.
Passado
uns minutos, respirou fundo e olhou em volta. Viu algumas pessoas de mochila e
havia mesmo uma mulher sozinha. Mas não era a Estrela, aquela devia andar pelos
trinta anos.
Esperou
mais um pouco, até a fome apertar. Jantou num restaurante ali perto e regressou
à entrada do Convento.
Nada.
Resistiu
à tentação de lhe ligar. Tinham combinado só o fazer depois de, pelo menos, um
dia inteiro à espera, para não estragar a expectativa, a surpresa.
Quando
ficou tarde, Adriano só queria deitar-se e dormir. Dirigiu-se ao hotel que lhe
tinham recomendado, tomou banho e adormeceu mal a cabeça lhe caiu na almofada.
Acordou
revigorado. Tomou o pequeno-almoço e encaminhou-se para o local do encontro.
Deu algumas voltas pelas imediações, observando as pessoas que iam chegando de
mochila, espantado com a quantidade de caminhantes. A maior parte vinha em
grupos. Também havia homens sozinhos, mas só viu duas mulheres nessa situação.
Uma delas pareceu-lhe a Estrela. Porém, ao passar perto dela, duvidou. E ela
não mostrou qualquer reação.
Depois
do almoço, regressou. À medida que a tarde avançava e se aproximava a hora de
jantar, começou a ficar preocupado. Deveria ligar-lhe? Talvez quando
regressasse ao hotel…
Começou
a escurecer. Adriano perguntava-se se devia jantar no mesmo restaurante, ou
experimentar outro, quando se apercebeu de uma mulher sozinha, com mochila.
Parecia muito cansada. E, de repente, a mulher ajoelhou-se, erguendo as mãos ao
céu.
O
mesmo gesto…
Num
impulso, foi direito a ela.
E
ela escancarou os olhos, exclamou:
–
Adriano!
Ajudou-a
a levantar-se, mas sentiu uma ponta de desilusão. O olhar não era o mesmo. Ou
seria do cansaço? Estrela parecia esgotada. O cabelo, apanhado num rabo de
cavalo, apresentava algumas brancas.
De
repente, Adriano envergonhou-se da sua desilusão. De que estava ele à espera? Ele,
que já tinha dormido, descansado, comido bem… enquanto ela acabara de chegar de
uma jornada cansativa. Estrela dizia-lhe agora ter andado quase 60 km, naquele
dia.
Estavam
ali os dois, tinham chegado ao seu destino. E tinham-se um ao outro. Era uma
ocasião para festejar, não para remoer desilusões.
O
jantar foi divertido, os dois conversando sobre as peripécias do caminho. Depois,
Estrela estava tão cansada, que quis ir logo dormir. No hotel, pediu um quarto
para ela.
Despediram-se.
Adriano
não adormeceu tão rapidamente como na noite anterior. Recordou o serão, passo a
passo. Os dois continuavam a entender-se bem, gostavam da companhia um do
outro. Para quem se sentia sozinho, há já quase um ano, tinham sido ótimos
momentos.
Na
manhã seguinte, Estrela surgiu à mesa do pequeno-almoço mais luminosa e sorridente.
Disse-lhe que pretendia passar ali em Mafra os seus restantes quatro dias de
férias. E logo a seguir:
–
Sabes o que me apetece fazer hoje?
–
Não. Diz!
–
Vamos visitar o Convento? Nunca mais lá estive, desde aquele dia, há mais de
quarenta anos.
–
Curioso. Eu também não.
Ela
piscou-lhe o olho:
–
Desta vez, vamos ficar mais atentos às palavras do guia.
Riram-se
os dois.
Começaram
a visita, num grupo, atentos às explicações do funcionário. Nisto, porém, Estrela
viu à sua frente um quadro que lhe trouxe uma recordação. Cochichou ao Adriano:
–
Não era este que era parecido com o padre da tua freguesia?
Desataram
os dois aos risos abafados. Quando conseguiu falar, ele admirou-se:
–
Ainda te lembras?
–
Claro.
Olharam-se
divertidos, mais alguns risos abafados. Alguns turistas mostraram-se
incomodados.
Estrela
sugeriu.
–
Portemo-nos bem! Já não temos onze anos.
À
medida que a visita avançava, porém, iam-se recordando das histórias que tinham
inventado para as figuras de certos quadros, como tinham troçado de certas
estátuas e até de alguns móveis.
Viam-se
aflitos para controlar o riso. Pareciam dois adolescentes patetas, sem
sensibilidade para obras de arte. Depois de mais alguns olhares indignados,
afastaram-se um pouco do grupo, embora ainda o seguindo.
Sentiam-se
a viajar no tempo. Lá estava a cumplicidade que os tinha ligado, aos onze anos.
Regressara o olhar recordado pelo Adriano, assim como o sorriso guardado na
memória de Estrela.
Ao
saírem do edifício, sentiam-se pessoas diferentes das que haviam lá entrado.
Eram dois adultos que haviam recuperado o encanto infantil um pelo outro.
Beijaram-se espontaneamente. Contaram sobre as suas vidas. Riram e choraram
juntos.
Passaram
a ocupar apenas um quarto, no hotel.
No
dia seguinte, durante um passeio num parque, Estrela perguntou:
–
Achas que vale a pena tentarmos uma relação?
Depois
de uma hesitação, Adriano respondeu:
–
Tenho um certo receio de que a distância acabe por a minar. Penso estar fora de
questão uma mudança de casa, seja para que lado for. Nenhum de nós se pode dar
ao luxo de deixar o emprego.
Estrela
sugeriu que se sentassem num banco e disse, depois:
–
Sabes, esta caminhada modificou mesmo a minha vida. Pelo menos, a maneira como
quero viver, daqui para a frente. Sempre pensei mais nos outros do que em mim,
principalmente, depois de formar família. Mas os filhos estão adultos. É certo
que ainda dependem bastante de mim, apesar de receberem dinheiro do pai até
acabarem os seus cursos. E eu, por vezes, queixo-me de que me visitam poucas
vezes, acuso-os de me terem esquecido... Mas, sabes, no fundo, é natural, não
adianta fazer um drama à volta disso. Por mais que me custe, tenho de aprender
a desprender. E a pensar em mim. – Encarou-o, de olhos cintilantes:
–
A pensar, por exemplo, que nunca na vida fui tão livre como sou agora.
–
E não é que tens razão? É assim mesmo que devemos pensar.
–
Pela primeira vez, não tenho ninguém a quem dar satisfações. – Sorriu: – Acho
que ia gostar de não passar o fim-de-semana sempre em casa. Porque não uma
viagem ao Algarve, uma vez por mês? E tu também podias fazer o mesmo, indo a
Viana. Ou não?
–
Claro. E talvez pudéssemos ir, de vez em quando, a Lisboa, onde mora o meu
filho.
Sorriram-se.
Beijaram-se. Depois Adriano disse, pensativo:
–
E talvez pudéssemos passar fins-de-semana ainda noutro sítio…
–
Onde?
–
Vamos almoçar primeiro. Depois, quero mostrar-te uma coisa.
A
seguir ao almoço, foram para o hotel. Chegados ao quarto, Adriano foi buscar a
caixa de Afonso. Contou a história dele e concluiu:
–
Ele disse-me que eu iria encontrar a hora certa para abrir a caixa. E tinha
razão.
Lá
dentro, havia algumas fotografias da filha, por vezes, sozinha, outras, com ele
próprio. Também havia um documento antigo. Adriano analisou-o: era a certidão
de nascimento de Afonso, com o nome dos pais e dos avós.
Havia
também um envelope. Adriano abriu-o e leu alto o bilhete que lá se encontrava:
Caro
amigo:
Pode
achar-me maluco por lhe ter dado estas fotografias. Para lhe dizer a verdade,
nem eu sei bem porque o fiz. Apesar de o nosso primeiro contacto não ter sido
amigável, acabámos a conversar amenamente e acabei por partilhar consigo coisas
da minha vida que, normalmente, não revelo a ninguém.
Sabe,
talvez me tenha tornado “bicho-do-mato”, depois do que me aconteceu. E talvez
tenha sido isso que levou a minha filha para longe de mim, desejosa de uma vida
mais social. Talvez eu a tenha isolado demais, nesse meu medo de que ela também
me deixasse. Enquanto foi criança, tudo correu bem.
Mas
eu devia calcular que, chegando a uma certa idade, ela desejasse outros voos.
Acabou
por acontecer o que eu mais temia. Porém, depois da sua visita, vá-se lá saber
porquê, recuperei a esperança de que, um dia, ela me venha visitar e converse
em bom termo comigo.
Desejo-lhe
uma boa caminhada e que chegue ao seu destino de boa saúde. Também lhe desejo
que reencontre essa sua amiga de quem me falou e tudo corra bem.
A
sua amiga Estrela é aliás o motivo por que pus a cópia da minha certidão de
nascimento na caixa. Como lhe disse, nasci em Viana, os meus pais eram de lá.
Será que a Estrela me saberá contar coisas da minha família?
Resta-me
dizer-lhe que em minha casa será sempre bem-vindo, sozinho ou acompanhado.
Um
abraço
Afonso
Depois
da leitura, houve um momento de silêncio, quebrado enfim por Estrela:
–
Calha bem.
–
O quê?
–
Acho que vou gostar do lugar onde mora o Afonso. Durante a caminhada, senti
esse desejo de arranjar momentos para fugir à minha vida citadina. E quanto à
família dele… – pegou na antiga certidão e acrescentou: – Conheço gente com
estes apelidos, em Viana. Não sei se estão relacionados com ele, mas posso
perguntar a amigos e conhecidos se os nomes próprios lhes dizem alguma coisa.
–
Darias uma grande alegria ao Afonso.
–
Sim. Sabes, acho que vou gostar muito desta nossa nova vida.
–
A vida começa aos 53 – retorquiu Adriano, emocionado.
–
A avaliar por Afonso, eu diria que a vida começa sempre que quisermos.
Cristina
Torrão






