12/01/24

Caminhos e Encruzilhadas - Capítulo 10



Estrela

As cores do sol dissolviam-se sobre o mar deixando as ondas alaranjadas. Caminhei por mais de 2 horas até conseguir sentir as areias da praia de Figueira da Foz coçarem a pele dos meus pés. Contemplo o horizonte marítimo enquanto o vento fresco atravessa meu corpo, carregando com ele uma estranha sensação de nostalgia, que já esperava fosse me atingir. Por um instante, sentia que não era a Estrela de agora, mas a de há anos atrás. Fecho os olhos e deixo a aragem percorrer minha pele e bagunçar meus cabelos negros. Quantos anos faz afinal? Em algum lugar do passado estive aqui com Marcelino, em uma época em que a felicidade parecia ao alcance de nossas mãos. Eu era apenas uma jovem que não entendia quase nada da vida. Diferente de agora, que sou uma mulher adulta e pareço entender dela ainda menos. Como disse antes, há muitos jeitos de amar e de uma certa maneira, eu e Marcelino nos amamos intensamente. Porém, às vezes a estrada fica difícil e o caminho estreito e no final nem sabemos quem está deixando quem ir embora.

Agora aqui de novo, olho para tudo isso. A areia debaixo dos dedos, as ondas do oceano lambendo a praia, os pássaros marinhos mergulhando atrás dos peixes, o vento cortando o rosto, o sol clareando tudo. Tudo parece tão igual. Tão simetricamente igual. Porém, tudo me soa tão estranho agora, como se eu não pertencesse a nada disso. Será que Marcelino sentiria a mesma sensação?

Caminho pela areia rememorando quando estivemos aqui a primeira vez. Lembro de quando já entardecia, Marcelino estava no mar, então começou a chover. Gotas grossas caiam sobre as ondas. Marcelino veio correndo até a areia onde eu estava em pé. Eu ia dizer para irmos embora por causa da chuva, quando ele me surpreendeu com um beijo. Foi um beijo forte, espontâneo, e pude sentir a areia de seus lábios salgando minha boca enquanto a chuva encharcava nossos corpos. Fomos correndo de mãos dadas até a casa em que estávamos. Tomamos banho e quando anoiteceu fizemos amor na varanda, ouvindo Patti Smith e o assoalho de madeira ranger debaixo de nós.

Sorrio lembrando disso tudo. Porém, preciso voltar para o presente, único lugar que me pertence. Respiro fundo e me recordo que estou indo ver Adriano. Então uma ponta de insegurança machuca meu peito e sinto borboletas no estômago. Não sou mais aquela jovem. Será que ele vai gostar do que o tempo me tornou? E será que minha alma cansada ainda pode sentir a paixão ardendo por dentro?

Então, como por um sinal divino, olho para o lado e um rapaz moreno de ombros largos e camisa florida me encara fixamente. Meu olhar esbarra nele por um instante e ele deixa escapar um leve sorriso malicioso para mim. Não sei quantos anos ele tem, mas deve ser metade dos meus. Devolvo a gentileza do sorriso com outro. Me viro e vou caminhando lentamente para longe da praia. Preciso seguir meu caminho e ele leva a Adriano e tudo que pode acontecer depois de todos esses anos.

A essa altura, antes de continuar, cabe agora indagar a pergunta que me trouxe aqui. Estou mesmo livre do passado e dos sentimentos que um dia tive por Marcelino, a ponto de seguir em frente? Minha resposta diante disso só pode ser: com certeza!

Meu coração estranhamente palpita e meu corpo parece entrar em ebulição interna. Percebo que minhas memórias daqui são recortes bonitos de um tempo bom. Porém, meu desejo e meus anseios não estão no passado e sim no porvir. Não iniciei essa longa jornada e cheguei até aqui para me reencontrar com o passado e sim para me encontrar com o futuro e de braços abertos lhe abraçar e acolher.

Com isso em mente, continuo rumo a meu encontro com Adriano, pois a nós dois pertence esse futuro. Futuro incerto, é verdade, mas quem tem certeza de alguma coisa nessa vida?

 

                                                         Grégor Carlos Marcondes

01/12/23

Caminhos e Encruzilhadas - Capítulo 9

 


Adriano

Abraçou as mãos ao ferrolho e rodou a medo. Não tinha idade para aquelas graças e se fosse apanhado era um embaraço.

O portão chiou os gonzos acusatórios.

Aguardou vigiando…

A noite estava de limpeza absoluta. Aquele manto negro pintalgado merecia um olhar atento.

Lançou com cautelas para que não fosse ouvido ao longe.

- Está aí alguém?...

«Ninguém…»

Entrou para o céu aberto como quem invade um palácio de rei ausente.

«Tudo meu…»

Chegou-se à muralha e deixou-se circunvagar numa volta inteira contemplando o horizonte franco e sem restrições, muito lentamente…

«Imensidão infinita…»

Ergueu-se uma brisa cálida de Leste oferecendo-lhe um arrepio de prazer. Um abandono…

«Olha Paula… na ponta do meu indicador esquerdo, a Lisboa buliçosa, cidade sem sono, no direito a Troia magnífica, costa sem fim, areal dourado, uma curva tentadora até lá ao fundo como um abraço… vês Paula? E olha ali, ali mesmo, Alcácer, daqui tão perto…, uma lanterna do Sado, vês ali iluminando, quase uma estrela? Tudo ao alcance dos meus braços abertos, menos tu. Que solidão contemplar a beleza sem partilha, sem ti principalmente, mas sem alguém. Olha Paula, olha-me bem este céu estrelado vês? Vê comigo, deita-te comigo a meditar o céu. Que grandeza sem fim… olha! Riscou, viste? Uma estrela cadente: pede um desejo Paula, pede. O meu está aqui contigo, em mim, imenso. Ouves-me daí, Paula?»

Um restolho disparou em cima da muralha mais à frente arrancando-o de si. Que seria na noite calma? Semicerrou os olhos e: ali mesmo, esbracejando, uma cegonha acomodava-se. Martelou duas vezes e acalmou. Voltou o silêncio e a inércia da noite imaculada.

Esfriava agora um pouco. Abraçou-se energicamente batendo com as palmas das mãos nas costas tensas.

«Abraça-te rapaz, na falta de companhia, abraça-te a ti mesmo. O momento merece, Adriano.»

O cansaço dos últimos dias ia-se manifestando, por vezes com frio, outras numa melancolia paralisante, uma falta imensa de companhia, sim, era companhia que faltava. Detestava a solidão do caminho, falava sozinho, parava em solilóquios descritivos; raramente se cruzava com alguém, mas quando acontecia, falava da sua viagem sem parar, do que o trazia ali, qual o destino. E por aí afora. E as pessoas que sim, que sim, julgando-o um pouco louco, se precisava de alguma coisa, desejando bom caminho e felicidades futuras.

«Diário, querido diário, que procuro afinal quarenta e dois anos depois? Uma tábua de salvação, ou uma desilusão?»

Guardou o caderno na mochila e aninhou-se no canto da muralha onde a encostara. Esgravatou umas amêndoas no fundo do saco para entretém do estômago. Não tinha sossego. Com o telefone tentou umas fotos panorâmicas do céu, um filme rodopiado dos 360º que lhe davam o horizonte. Não tinha sono. Que inquietação.

«Talvez… seria ousadia?»

 

- Parente?… boas noites…

- Hep! É você, Adriano?... Atão a estas desoras não está a descansar, homem?

- Eu mesmo… amigo Afonso… estou com uma espertina malvada…

- Ê môce marafado… não aguenta com a espera, agora que está mais perto?

- Talvez…. talvez... estava aqui tão sozinho, sem ninguém. Tinha de falar com alguém…

- Fez bem, homem… fez bem… tenho pensado muito em si, sabe? Caminho fora, cabeça entre as orelhas, destino marcado, mas incerto…

- É isso mesmo, amigo Afonso, é isso mesmo.

- De manêras que, aqui sentado a olhar o magano do gato, alembrê-me, alembrê-me sim senhor, aqui dum filme que vi na televisão há muito, faço-me compreender?...

- Sim, amigo Afonso, diga

- E era uma história assim parecida com a sua, não quer lá ver?… Também se escreviam, ele era fotógrafo e ela dona de casa; não era nenhuma gaitona, mas também não era monga… nã sei se estáver; não era não senhor… marido porreirinho, filhos parece que dois… lembro-me de umas pontes com uns telhêros… assim, umas coberturas… faço-me compreender?...

- Sim, sim…

- Esta cabeça… ela não tinha o que queria e a ele faltava-lhe tudo - assim é que é - e depois, e depois nunca tiveram coragem para se reencontrarem, juntarem-se, não quer lá ver?... Os filhos, o compromisso, a incerteza…. Olhe! Uma vida adiada. Quem andou, não tem para andar, e quem não andou, andasse. Já disse, prontes! Vá! Tenha a coragem de pegar numa mulher daquela idade. Guardado estava o belisco, homem! Desculpe lá a apertelência. (e riu-se) Patochadas. Vá, mê amigo veja se descansa que… Mas então que é isto, ainda não me disse onde estava?…

- Em Palmela, caro amigo; no castelo. Joguei as mãos ao ferrolho e agora é tudo meu.

- Estou? Amigo Afonso? Está a ouvir-me? Estou?...

- Que diacho… estou?

- Estou aqui, Adriano, estou aqui…

- Se disse alguma coisa que não devia, desculpe-me…, mas… o que foi?...

- Disse Palmela, Adriano… disse Palmela… agora vá dormir. Deixe-me recuperar e amanhã falamos. Eu serei o despertador da sua alvorada… vá, até amanhã… fique bem…

 

A noite foi de atalaia sem nada que vigiar, a não ser a vida alheia vista em luzes tremeluzentes à distância. O Mundo bulia, apesar da hora. Por vezes cabeceava, mas logo a mola do reflexo lhe levantava o queixo num espasmo. Estava exausto. Só um banho morno e uma cama firme lhe restituiria alguma paz e força para o que faltava.

O céu estrelado foi-se desvanecendo com a entrada da aurora, mais um dia a suceder à noite, a luz vencendo as trevas mais uma vez.

Estremeceu.

O telefone revelou-se numa estridência alarmando o ermo. Que inconveniência…

- Estou?!

- Adriano?...

- Oh!…, desculpe, amigo Afonso; estou para aqui meio estremunhado e o toque do telefone pareceu-me o sino da igreja. Dormiu bem?...

- E quem é que pega no sono com um inquietamento destes, homem?...

- Eu também passei o resto da noite a pesar figos, dormir, nada…

- Pois então vamos lá à razão do incómodo logo pela madrugada…

- Não incomoda nada, amigo!...

- De Palmela… falava meceia ontem… de Palmela…

- Já lhe contei que espero há muito o regresso da minha filha, mas não lhe contei nada da mãe…

- Pois, de facto não…

- Pois a minha Ana Rosa, minha?, esta mania de chamarmos nossos aos outros…, a mãe da Ana Luísa deixou-me com ela nos braços, pequenina, quando fugiu com uma trupe de ciganos de Palmela que veio cá à aldeia fazer um espectáculo. Saltimbancos, está bom de ver…. Sim, senhor. Mesmo assim. Foi ver a festa, e foi com a festa; sem dizer água vai, nem água vem. Eu aflito, com a criança nos braços, terá acontecido alguma coisa?, pergunta a este, pergunta àquela, todos comprometidos, sem que dizer, e como dizer? Só na GNR é que o cabo me informou, assim meio a mangar… «então meceia não sabia? Com o belisco que ela é o que queria?...» Aquilo ofendeu-me tanto tanto, que foi preciso agarrarem-me para que não me desgraçasse ainda mais.

- E nunca mais soube nada dela?...

-  Nunca mais soube nada dela… Aqui no lugar sabiam... há sempre alguém que passeia a curiosidade, mas todos me respeitaram e mantiveram na ignorância. As mulheres de cá ajudaram-me no início, eu sabia lá tratar duma criança, homem! Depois, uma vizinha comprometeu-se a tomar conta dela quando eu ia trabalhar de jorna, e os anos foram passando…

- Está-me ouvindo, Adriano?...

- Estou, amigo Afonso, não quero interromper e também… que dizer?...

- É. Estas dores que não se contam a ninguém. Dizem-se melhor ao telefone porque não é pessoa. É a primeira vez que falo nisto, sabe? Assunto que nem com os amigos comentei e veja-me agora, a desabafar com um telefone que tem na outra ponta um desconhecido… meceia desculpe-me.

- Nada a desculpar, meu amigo…

- É. Eu que nunca a vi como uma zorra… era a minha mulher, prontes. A mãe da minha filha. Ontre-dias a minha Ana Luísa - a minha filha…

- Sim…

- Vem com uma conversa que a mãe. Quem Ana Luísa?! Quem?! Olhe que sempre a tratei por Luisinha e ela a mim por paíto, mas naquela maré, desceu-me um fel ao estômago tão azedo quando ela alvitrou a mãe! Quem, Ana Luísa?! “Ó paíto, eu tenho andado com medo de lhe falar, mas… a mãe escreveu-me.” Escreveu-te?... “Sim. E na terceira carta pediu-me muito para que eu fosse ter com ela, para nos conhecermos…” Terceira carta, Ana Luísa?... “Eu tinha medo de lhe contar, paíto. Mas respondi-lhe…” E, que lhe respondeste Ana Luísa?... A miúda estava branca como a cal da parede, Adriano. Eu, um cadáver. Que tenho andado mais ou menos assim…

- Não é para menos, amigo Afonso… não é para menos…

- Enfim, ela lá me disse que ia, e que até já tinha comprado bilhete na carreira. Mas que não me preocupasse, que voltaria, claro que sim, eu é que era o paíto dela… mas que estava com muita curiosidade de conhecer a mãe…

- E depois, amigo Afonso?...

- Depois, dei comigo rodeado das vizinhas, que tinham vindo acudir ao choro da catraia, porque eu estava desfalecido naquele descabeço. Quando elas chegaram, ela saiu a correr com a mochila atulhada.

- Como assim, ela saiu…

- Assim foi. Quando me informou, ao que parece já tinha tudo combinado com a mãe… Andei aqui uns dias baldeado, fui-me informar, mas não havia nada a fazer. Ela era maior, embora o meu amparo, a vida era dela, nada a fazer.

- Tem de ter paciência amigo… importante é que ela esteja bem…

- Não merecia, Adriano… não merecia… morri ali.

- Ninguém sabe a morada?...

- Para quê, seu cabeça de azinho?... Para quê?...

- Desculpe. Não me devia estar a meter…

- Nada… desculpe eu. Cabeça de azinho é o telefone…

- Se eu puder fazer alguma coisa…

- O que você pode fazer, é acabar essa viagem, encontrar a magana, fazer muita meia azul e não a largar mais, ouviu?

- O amigo está cá com umas certezas… (e riu-se…)

- Está-se lembrando daquele filme? Ganhe coragem homem. Não faça como o outro que morreu toda a vida arrepeso… e desculpe… desculpe muito, mas até parece que respiro melhor depois deste limpa saco. Obrigado, Adriano. Espero sempre o seu telefonema ao fim do dia.

- Vou ter de desligar. Alguém está a abrir o portão. Mais logo falamos…

- NÃO SE ESQUEÇA DE MASSAJAR BEM ESSAS CANOEIRAS!...

 

José Bessa

 

15/11/23

Caminhos e Encruzilhadas - Capítulo 8



Estrela

Confesso que depois de Aveiro, muito me passou pela cabeça. O que sentia não era bem cansaço, nem assomo de desistência, mas de repente deu-me para pensar demasiado naquilo que estava a fazer. Não sei se os belos doces tinham semeado em mim dúvidas ou uma certa lassidão. A lembrança da carta de Adriano ainda me fazia bater o coração e estimular os sentidos. Contudo, senti que tinha levado uma vida a pensar nos outros e pouco em mim, ao ponto de ter desistido de avançar e ser eu mesma. As palavras do meu “primo”, trouxeram-me a coragem para continuar.

Resolvi seguir mais para litoral. Precisava nitidamente de ver o mar, de sentir o cheiro da maresia e de alongar o olhar no horizonte e nas marés.

Saí bem cedo mal o sol tinha raiado, munida de muita água e alguma fruta. Depois dos doces de Aveiro, nada melhor que espevitar o organismo com as coisas mais básicas, mas cheias de vitaminas. Para além do mais, aquela pureza de sabores frescos, era mesmo o que o meu corpo precisava para mais umas horas de caminho.

A minha ideia era seguir até à praia de Mira, até ao extenso areal, onde se o tempo ajudasse, conseguiria pernoitar. As horas seriam ainda bastantes e por percursos variados, tentando um pouco fugir das estradas mais movimentadas. No entanto, perdi bastante tempo, porque cada pormenor da paisagem me levava, num encanto quase pueril, a parar inúmeras vezes para colher ou meramente observar, o arvoredo, ou cada pequena flor selvagem com que me deparava.

Em parte, estou a tentar fugir um pouco àquela que tenho sido durante muitos anos. A vida cosmopolita tinha certas vantagens, mas era um espartilho que usei demasiado tempo e me pôs à margem do que realmente gostava e amava: o campo, o mar, a natureza. Por muitas flores que tivesse cultivado na minha varanda, eram apenas uma amostra, que acalmavam o meu desejo por outros horizontes.

Todas as paragens um pouco inconscientes, resultaram no avançar rápido das horas. Tinha feito mesmo assim 5 horas de caminho, o que só conseguira graças à boa forma adquirida com muitos anos de natação, ginástica e dança, que tinham conseguido moldar-me o corpo e a mente.

Resolvi parar na Praia do Areão. O extenso areal era extremamente apelativo, pelo que decidi caminhar ao longo dele e nas zonas que me pareciam seguras, molhar os pés numa espécie de catarse que me pareceu tão necessária. A maresia e o marulhar das ondas traziam-me aquela paz de que necessitava não propriamente para pensar, mas para me fazer relembrar os tempos ingénuos em que conhecera Adriano. Ao lembrar-me disso o pensamento voava para longe para situações e memórias prenhes de uma melancolia de outros tempos e da ternura da infância.

Aos poucos as gaivotas acordaram-me do sonho e verificando o sol no horizonte, pus-me de novo ao caminho. Pensei que mais ou menos em 3 horas conseguiria chegar à praia de Mira, mas o vento frio que, entretanto, se fez sentir, fez-me desistir de dormir ao relento. A minha filha tinha-me dado uma morada a 200 metros da praia, onde poderia passar a noite. Fui seguindo a linha costeira e cheguei finalmente ao local pretendido. Todo o percurso tinha sido feito de magníficas paisagens, as quais sempre me retiravam tempo à caminhada, mas me davam também um tempo de descanso. Por vezes, sentava-me um pouco para beber água ou comer alguma da fruta que me restava.

Finalmente a encantadora praia, apareceu-me no horizonte. No entanto dirigi-me ao tal local que a filha me recomendara. A casa da Clotilde, sua amiga de longos anos, era extremamente aprazível. Grata pela amabilidade, tomei um banho quente e assisti a um luxuriante pôr do sol, na pequena varanda do quarto que Clotilde me tinha destinado. A amiga da minha filha era uma pessoa extremamente discreta, ou possivelmente achou-me cansada, pelo que não prolongámos a conversa, embora ela soubesse de toda a história.

Dormi como uma pedra, mas consegui acordar para ver um nascer do sol mágico a estimular-me para continuar o caminho.

Abastecida com alguns víveres e muita água, meti-me a caminho da Figueira da Foz. Seriam muitas horas de caminho, mas sentia-me recuperada e com um desejo intenso de lá chegar. O porquê, escondia-se na minha história de vida e seria impossível continuar ao encontro de Adriano, sem antes resolver dentro de mim certos assuntos.

Há muitos anos tinha sido ali muito feliz. Nessa altura o meu casamento passava por momentos agradáveis e apaixonados e precisava de saber o peso daquelas memórias.

Apesar de tudo o que passara, o saudosismo embora inútil, é ainda uma âncora a prender-me. Por enquanto releio a carta de Adriano e penso em como estará e se terá pensado, entretanto que tudo era uma loucura. Mas seguindo tudo o que tínhamos combinado, não deveríamos ainda contactar-nos, enquanto não chegássemos, se chegássemos, ao destino marcado.

Com tudo isto no pensamento, subi à Serra da Boa Viagem, para olhar lá do alto a Figueira.

Afinal precisava de tomar decisões e só desejava que elas não me atraiçoassem.

 

Margarida Piloto Garcia

 

06/11/23

Caminhos e Encruzilhadas - Capítulo 7

 


Adriano

Não encontrando sítio para pernoitar, pensava albergar-me num pequeno canto que me servisse de refúgio... o tempo está óptimo, morno, agradável, portanto... ou dormirei sob as estrelas do céu. Mas tentarei ainda mais uma vez encontrar algo mais protector. Seria, sem dúvida, um outro conforto.

 Caminharei então um pouco mais, pois apercebi-me vagamente, quando me despedi do simpático casal, que poderia haver casas por perto. O sol já se escondia, rápido, mas pareceu-me ver alguns pequenos telhados vermelho alaranjados, (ou seria efeito do sol a pôr-se?) para além da minha caminhada... virados para norte. Cheguei! Havia, sim, duas pequenas casas rurais. Para lá me dirigi. Por sorte numa delas estava uma robusta mulher fazendo algumas arrumações de lavoura. Fui ter com ela explicando ao que vinha. De imediato me cedeu um pequeno espaço limpo para pernoitar.  A Sra. Maria, de seu nome, deixou-me um pequeno jarro de água, à porta, para as lavagens do dia. Despediu-se dizendo que nada tinha a pagar, e sem mais conversas foi entrando na sua própria área de residência. Já devia estar habituada a estas situações. Acordei bem, excepto a sensação, ainda que leve, de um cansaço, sentido nas pernas... terei de as ginasticar um pouco para conseguir algum equilíbrio de movimentos. Há já algum tempo que não as exercito como recomendou o médico quando caí nas escadas, em casa. Em casa!!!

O espaço em que passei a minha noite, exíguo, mas suficiente para uma noite bem dormida - contíguo a uma pequena área de cozinha onde, simpaticamente a dona da casa me deixou algo preparado. Assim depois de me levantar só teria de colocar a chaleira ao lume para fazer meu chá de melissa (de que eu mostrei gostar, o que levou a senhora a buscar um pequeno ramo ao campo próximo) e um pedaço de pão alentejano, penso que acabado de fazer.... Simpatias que agradam a qualquer um. Ao sair do alojamento ainda a procurei, mas percebi que já havia saído para a sua labuta diária, aproveitando o fresco do início da manhã. Conferi os pertences na mochila, colocando a garrafa d´água numa das bolsas exteriores e a bussola, no bolso dos calções.  Conferi, também se a caixa entregue com tanta confiança, pelo Afonso "Adamastor" continuava no lugar em que a havia colocado. Um mistério esta caixa... já por duas vezes estive tentado a abri-la, mas não! Não seria justo, pois a promessa reservava-a para o final da viagem E de preferência com a companhia da Estrela.

Com tudo ordenado, reiniciei a caminhada neste novo dia que já ia com algum calor.

Agora mais frequentemente pensava na "minha Estrela" e nos seus sedosos cabelos negros. E os olhos?.... Nunca esqueci a sua figura harmoniosa... curioso por revê-la, mas também receoso de pensar sequer, que uma pequena chama não reacenda quando do nosso encontro… como estaria ela, Estrela, neste momento? Que coragem deve ter assumido, para se "meter" nesta pequena aventura... Estará talvez em algum pequeno café, tomando o pequeno almoço, deliciando-se com um doce conventual - caso seja ainda gulosa dessas especialidades...

Como haveria de retomar uma outra estrada, resolvi que antes disso iria a São Teotónio tentar mastigar algo consistente. Tenho por lá passado de automóvel, mas a pé será uma estreia. Eram sete da manhã, um pequeno almoço frugal levar-me-á a algo mais elaborado. Depois vou até Alcácer do Sal, o que equivale a percorrer uns bons Kms a pé. Nem andando bem veloz resolveria as várias horas de percurso até chegar lá! Uma etapa difícil, que obviamente não concluirei num só dia.

Queria, nesta caminhada, observar com o meu pequeno binóculo trazido para o efeito, numa área ainda sossegada, as aves migratórias existentes nesta zona, nesta época, no Vale do Sado. Que sei serem de várias espécies.  E fazer na minha agenda, trazida para o efeito, o registo das mesmas, em seu habitat privilegiado. Complementando os registos com algumas fotografias tiradas com o telemóvel. Gosto que iniciei com a Paula, que logo depois de casarmos me convenceu a enveredar por esta bonita actividade lúdica, que me toma algum tempo e de que fiquei viciado.

Talvez Estrela já se tenha feito de novo, à estrada... Tenho de ir andando, também. Não me posso distrair, não vá a noite surpreender-me. Para estes lados há várias tasquinhas que servem para almoço a deliciosa e típica caldeirada desta zona. Prato único substancial, que sacia qualquer fome... tentarei dirigir-me a uma - a primeira que encontre.

Tenho-me surpreendido bastante, neste meu trajecto, com os pequenos rios, ribeiros e outros pequenos caudais de água que encontro. Sempre circundados de forte vegetação. O descanso que me permito ter nesta viagem faço-o sempre sentado à beira destes frescos lugares, de frescas águas, aproveitando para refrescar os pés e descansar as pernas... A idade começa a fazer-se sentir!

Já fiz algumas fotos de pássaros enquanto refresco os pés e também os registos em caderno que acho importantes. Consegui identificar dois tipos de andorinhas das chaminés e dos beirais. Encontrei gaios, gaivotas e também uma gaivota parda. Galinhas d'água, papa amoras, um chasco cinza e dois papa moscas pretos (talvez um casal). Enfim uma infinidade de belezas, que a natureza nos concede... e por vezes nem reparamos bem tão distraídos andamos.

Quanto mais caminho mais reflito no nosso almejado encontro. Imagino Estrela uma mulher bonita. Ela era uma adolescente bonita. Dificilmente o seu rosto sairá desse registo. Penso eu... Mas o que mais nela me fascinou, foi a empatia que torna qualquer contacto pessoal com um indivíduo, muito mais fácil. Bem, quanto mais o tempo corre, mais situações vividas há já tanto tempo entre nós, me ocorrem. Parece que o destino se propõe ajudar-me. E eu agradeço, pois começo a sentir-me um pouco ansioso.

Vou calçar de novo as botas, guardar os apetrechos de ornitologia, e pôr-me a caminho. Estou num troço da caminhada um pouco íngreme. Uma ladeira que terá, talvez, cerca de quinhentos metros.... Então vamos lá! Quando a vencer encontrarei sítio para comer, tenho essa sensação.

Depois, já saciado, e em descanso, tentarei por as ideias em ordem. Quero que o encontro com Estrela se torne inesquecível para mim, desejando que também ela, Estrela, sinta alguma alegria em rever-me. Só então irei perceber se valeu a pena termos ambos acreditado nesta aventura, tão desejada e tão bem planeada por nós dois...

 

                                                                              Fernanda Simões

 

15/10/23

Caminhos e Encruzilhadas - Capítulo 6

 


Estrela

De Esposende, depois de só molhar os pés no mar fresquinho, decidi que iria andar o quanto aguentasse. Até Ovar, são 19 horas de caminhada, portanto, resolvi neste primeiro estirão ir só até ao Porto, a ver se conseguia tomar um cafezito no Cais da Ribeira ao cair da tarde, e não mais.

Dormi na casa da amiga Sandra, que mora em Campanhã. Tomamos um vinho enquanto eu lhe contava toda a história. Depois do vinho, um banho demorado, cama quentinha e pé na estrada outra vez, porque queria chegar a Ovar antes do fim do dia.

Passei por Espinho a deter o olhar por todas as casinhas antigas, pois lembrei-me de uma viagem que fiz com a mamã e o meu mano, à altura com meus idos 15 anos. A mamã tinha lá uma comadre muito querida. A filha chamava-se Sónia, de quem minha mãe era a madrinha, mas já não me consigo lembrar do nome da mãe... Foi uma viagem muito agradável, passeamos por muitos belos sítios históricos que trago na lembrança com carinho. E lembro-me que a comadre da mamã tinha lá uma lojinha de roupas numa casinha com varanda azul. Ah, por acaso, lembrei-me, chamava-se Maria João! É claro que não consegui lembrar-me do nome da rua e não encontrei a casa, mas como queria chegar cedo a Ovar, não me demorei muito a procurar.

Ao chegar a Ovar, comi o famoso pão de ló na Flor de Liz. Encontrei um cantinho para pousar e adormeci, depois de ler mais uma vez o conteúdo do envelope do “primo” António.

O que estará o Adriano a fazer hoje? A que altura deverá estar? Prefiro não estar a pensar muito nisso, mas espero que tenha em seu coração a mesma alegria medrosa que tenho, e anseio por vê-lo e ler em seus olhos o que meu coração guardou por tantos anos tão bem Escondido.

Acordei muito cedo no dia seguinte e como tinha ido ao mercado municipal comprar frutas para comer durante a caminhada de mais um dia rumo a Mafra, pus-me logo a andar. Tinha comprado também umas roscas de canela na Flor de Liz, porque não é só de frutas que se satisfaz o paladar...

Antes de sair da cidade, passsei detidamente os olhos pelo museu vivo do Azulejo, para recarregar os olhos d’alma com a beleza e a querida história dos meus patrícios.

A minha ideia era sempre acompanhar o mar até Mafra, mas não pude furtar-me a andar até Aveiro.  Aveiro sabe à infância, um sabor não proibido pelas tolas exigências da forma física. Além disso, a forma física agora pouco me importa, com esta média de 9 horas de caminhada a cada dia. É mesmo preciso ingerir alimentos que me dêem força para chegar e recomeçar a cada dia.

Mas não é só sobre comer, o meu relato. Depois de Aveiro, voltei à Gafanha da Encarnação para seguir viagem rumo ao sul, tal qual pássaros, a fugir do frio no inverno. E voltei mais uma vez a falar para dentro de mim, e a recitar o que lera no envelope do “primo” António… ”porque me deu um beijinho”

 

“Se algum dia um beijinho eu m’recer

Hei-de lhe dar o que na vida aprendi

Qu’a vida é hoje, quando se deve viver

Pois o hoje nunca se vai, foi o que vi.

 

Todas as vezes que me deito a dormir,

Penso: “Acabou-se o hoje!”, mas não é

Pois a noite se vai, novo dia nasce a sorrir

De pé, firme e forte, novo hoje a luzir

 

Então vive, linda menina!

O que bom não foi, retira da mente

E toca a viver nova Estrela matutina

Qu’o hoje é o teu melhor presente.”

 

(Fiquei a pensar na sabedoria que forja as almas mais humildes, quanto passou na vida o Sr. António, o quanto sofreu, e como passou por tudo a guardar em seu rosto aquele sorriso puro.)

Venho pelo caminho a pensar no que me levou a tomar esta decisão. Sim, ainda continuo a perguntar-me sobre a validade deste passo, mas mais pelo medo do desconhecido do que por achar que poderiam julgar-me.

Não me importa muito o que pensem a meu respeito. Importa-me é o risco da falha, de acreditar em um sonho e vê-lo ruir. Enfim, é um preço que se deve pagar para irmos em busca dos nossos sonhos. Mais fácil, de certeza, seria ficarmos acomodados onde sabemos que o amanhã não nos trará surpresas.

Por muitos anos fiquei presa ao que julgava ser o correcto. O que não quer, de maneira alguma, dizer que esteja a fazer algo errado, mas decidi não pensar mais nisso. Penso antes no risco. Um grande passo rumo ao desconhecido, isto é o que estou a dar.

Mas, conforme disse o “primo” António, “Vive, linda menina! Toca a viver nova Estrela matutina!”

E toca a comer Ovos Moles d’Aveiro para sorrir!

 

Tixa Falchetto

06/10/23

Caminhos e Encruzilhadas - Capítulo 5



Adriano 

Fiquei por um tempo, que me pareceu ser longo, mas que com certeza foi apenas de alguns segundos, à espera que Afonso abrisse a caixa. Mas ele não a abria. Acariciava-a em círculos como se os seus pensamentos também andassem às voltas, à espera de uma decisão. Até que parou, mas continuou sem dizer palavra.

Confesso que já me estava a sentir inquieto. Talvez inquieto seja um termo demasiado forte, mas que me estava a provocar um certo nervoso miudinho, lá isso estava; aquela atitude do velho Afonso estava a empatar-me a caminhada. Se até ali não tinha tido dúvidas em relação ao voltar atrás, naquele momento algumas me surgiram. E estendi a mão em direcção ao objecto de culto, que aquele ancião venerava com o olhar vítreo, com o propósito de levantar a tampa; mas uma mão ligeira impediu-me…

– Não, não a abra já.

Se já estava com as ideias baralhadas antes disto, mais ficaram naquele momento.

– Leve-a… leve-a consigo – e com aquele olhar dos velhos pensadores, acrescentou: – saberá quando chegar o momento de a abrir.

Não entendi nada daquilo, mas pronto: faça se a sua vontade. Até porque se aquela nossa quase loucura, minha e da Estrela, iria causar alguma transformação em nós, como eu tinha lido no tal relato de um peregrino, lá na biblioteca municipal, eu começava já ali. A aceitar carregar com resiliência aquela caixa, que sabe-se lá que revelações guardaria.

E, com a caixa dos segredos daquele velho homem no fundo da mochila, lá reiniciei o caminho. Por mim, abria-a logo ao virar da primeira curva, desvendava-se o mistério e eu ficava completamente livre para o propósito que inicialmente me tinha movido. Mas pronto, estava decidido: ia esquecê-la no fundo da pouca bagagem que levava e não pensaria mais em tal coisa, que o tal momento havia de chegar. Assim esperava!

Ai Estrela, minha Estrela, que aventuras já viveste tu neste início de peregrinação? Sim, é uma peregrinação esta nossa façanha; uma peregrinação que cultua o amor. Bem sei que combinámos não fazer uso dos telemóveis para relatos exaustivos das nossas experiências diárias (isso ficaria para depois), mas agora já estou em querer que isto seria muito mais fácil se o fizéssemos. Tenho tanta vontade de te contar o que já me aconteceu. Se estou a tomar as decisões certas… se estou a fazer o que devo. Como sabes, sempre fui uma pessoa que gosta de partilhar as dúvidas e de ouvir todas as opiniões antes de chegar a uma conclusão. E claro, também gostava de saber mais do que estás a passar. Enfim, são as regras que definimos e vamos lá cumpri-las. Estou ansioso por te encontrar.

Para evitar o terreno mais acidentado da serra algarvia, tenho vindo a deslocar-me para noroeste; com a ajuda da bússola, claro está, que o meu sentido de orientação não é assim tão apurado. Não sei bem onde estou, mas pelo que já andei, diria que estou prestes a avistar o mar. Bem, não só pelo que já andei, que foi muito mesmo (o dia todo desde que saí da casa do Afonso, só com duas paragens para comer, numas tascas que encontrei pelo caminho e mais algumas para me molhar, beber água e encher a garrafa que trago, nuns regatos que também atravessei e fontanários com que me cruzei), mas também pelo cheiro a maresia que só quem o sente todos os dias o reconhece, ainda que a alguma distância. Só não sei se já cruzei a linha de fronteira entre o Algarve e o Alentejo, mas também a diferença – se é que a há – é tão ténue que com certeza não a decifraria.

Isto até parece coisa de outros tempos. É claro que eu já fiz o percurso Faro/Lisboa e vice-versa bastantes vezes, principalmente para visitar o meu filho, mas por autoestrada ou estrada nacional; o que não tem nada a ver. Isto até parece outro mundo, outro país, distante daquele que eu pensava que conhecia.

Acho que não posso dizer que seja exactamente sol-posto, mas depressa será. Caminho num estradão de terra batida, com o sol a dar-me pelas costas; o que alonga a sombra e aumenta a sensação de lonjura, fazendo-me assim pensar no que ainda tenho para andar.

Mais adiante, na estrada, um casal de uma idade já com alguma experiência de vida caminha a um ritmo sincronizado, tal como as vivências que partilham, com certeza. Não consigo perceber se conversam, mas apertando um pouco o passo, acerco-me e percebo que nem uma só palavra desarmoniza aquele quadro de natureza idílica. Talvez já se conheçam tanto que não necessitem delas para dialogar. Afinal, o silêncio é a coisa mais bonita de se partilhar com alguém. Mas também a mais difícil. Não me atrevo a aproximar-me, sinto que não tenho esse direito; ainda que algumas informações me dessem jeito para saber onde estou… e para onde vou.

A poeira do caminho amortiza os meus passos, ficando assim uma total ausência de ruído. Só os sons inerentes aquela obra de arte, talvez divina, embalam o meu andamento, que naquele momento se torna leve, como um voo de pássaro rumo à derradeira existência desde sempre adiada; como uma promessa que finalmente ia ser cumprida. A promessa que há muitos anos vi nos teus olhos de criança.

Foi a mulher que, finalmente, se virou para trás e me viu. Acho que mais por instinto do que por qualquer outra coisa. Elas são mais instintivas que nós homens, todos o sabemos. E também todos sabemos que sempre acabamos por as seguir. Seja onde for, em que época ou contexto for, é assim! Como tal, ele seguiu o gesto dela, notando assim a minha presença e proporcionando a minha aproximação.

– Ora, muito boas tardes! – Adiantei-me no cumprimento, procurando causar uma primeira boa impressão.

– Muito boas tardes, amigo! – Responderam sincronizadamente, tal como o seu caminhar.

– Então o que se faz por aqui?

– Olhe, a gente recolhe a casa, e o senhor o que o traz por aqui?

– Olhe, eu também busco um lugar para me recolher… quer dizer, quero perguntar-vos se há por aqui alguma pousada ou assim para passar a noite.

– Ah, o senhor é daqueles caminhantes que andam por aí a ver a natureza. – Disse a mulher, que até então tinha estado calada. – Passam por aqui muitos.

– Pois passam. – Corroborou o homem. – Mas essas casas que diz não há muitas aqui na zona, só mais ali para o litoral… para ali sim, por causa das praias.

– E isso é muito longe?

– Ainda é um bom bocado. E assim, a pé, não há de chegar lá muito cedo.

Perante aquela informação, comecei a cogitar a ideia de outra vez, dormir ao relento; se bem que da primeira vez não foi bem isso que aconteceu. Mas o homem continuava a falar…

– Aqui pela região também podia haver algumas, que até faziam falta… para pessoas como vossemecê. Havia por aí umas casas desabitadas que bem podiam ter sido arranjadas para os tais alojamentos locais. Mas agora já não, agora já não dá… estão cheias com essa estrangeirada que para aí tem vindo.

– Estrangeiros, é? Há muitos aqui na região?

– Oh, se há… vossemecê nem faz ideia. Estão sempre a chegar aos magotes.

– Ah, então e o que é que vêm eles para aqui fazer? – Perguntei apenas para confirmar, que pelo rumo da conversa já me estava a situar, já sabia em que etapa do caminho me encontrava.

– Atão, são os que vêm para aí a trabalhar para as estufas e para toda a agricultura.

– Mas aqui não vejo estufas.

– Deixe chegar ali àquele altinho que já começa a avistá-las.

Mais algumas palavras trocadas e o casal despediu-se, entrando num outro caminho que ia dar à casa que se via um pouco à frente. A sua casa.

Eu, que agora já via o sol pôr-se no horizonte, preparava-me para encontrar um lugar para passar mais uma noite sob as estrelas… rumo à minha Estrela.

 

                                                                           Luísa Vaz Tavares

01/09/23

Caminhos e Encruzilhadas - Capítulo 4

 


Estrela

 

Vou no meu segundo dia de viagem… meu Deus, será real o que estou a viver?... ou estarei a acordar de um lindo e maravilhoso sonho?

Na minha mente ainda bailam as palavras daqueles poemas que eu adoro, escritos por autores de mão cheia e que imaginei terem-me sido enviados pelo Adriano. Pois, na nossa relação à distância sempre mostrou um certo sentido poético. Uma pessoa atenciosa, com palavras doces e de conforto em qualquer situação mais critica… mas será que o e? Terá ele a sensibilidade e a delicadeza que eu vi na criança que encontrei lá atrás no tempo? Desde que o conheci jamais amei com tanta intensidade outra pessoa. Uma forma de amar diferente das convencionais, pois hoje tenho a certeza de que há muitas formas de amar. Apesar da distância e pouca convivência, em tudo o que na vida fiz, bom ou menos bom, pensei nele.

Será que se estivesse com ele a vida seria melhor?

Não sei, mas sei que hoje vou a procura de um caminho.

Ontem, depois de muito andar a passos largos, decididos e fortes, percebi que quero mostrar – mais para mim mesma do que para os outros – a mulher que vai procurar a sua realização. Realização que lhe traga esperança, tranquilidade e paz no coração.

Neste turbilhão de pensamentos e com o cansaço, senti-me desfalecer à beira do caminho. Foi então que ouvi uma voz, que que me chamou "venha, venha comigo”. Amparou-me e levou-me consigo; foi-me dizendo que era voluntaria na Santa Casa da Misericórdia. Segundo as suas palavras, era hábito receberem peregrinos na Instituição.

       Pela manhã, tinha indicação para tomar o pequeno-almoço com os utentes. Aceitei o convite com agrado. Era mais uma experiência dentro da experiência que estou a viver.

        A entrada da sala, um grande cartaz que dizia:

 

 Obras de Misericórdia

 

Corporais

 

         – Dar de comer a quem tem fome

– Dar de beber a quem tem sede

– Vestir os nus

– Dar pousada aos peregrinos

– Tratar os enfermos

– Visitar os presos

– Enterrar os mortos

 

Espirituais

 

– Dar bons conselhos

– Ensinar os ignorantes

– Corrigir os que erram

– Perdoar as injúrias

– Consolar os tristes

– Sofrer com paciência as fraquezas do próximo

– Rogar a Deus pelos vivos e defuntos

 

Depois de ler, pensei para mim: muito actual! Apesar de as Misericórdias terem sido instituídas em 1498 pela rainha D. Leonor estes valores continuam a fazer sentido.

Entrei na sala, estava repleta de seniores. Alguns olharam-me amavelmente, outros nem tanto. As suas rugas mostravam horas e dias de muito trabalho e algumas amarguras; cada um guardava no semblante as lembranças de uma vida e parecia que viviam sempre ansiosos por notícias do mundo que tinham deixado lá fora.

Enquanto as cuidadoras distribuíam a alimentação, acerquei-me de alguns que me pareceram mais frágeis. Um deles, de lagrimas a saltarem pelos olhos, dizia "Sabe, o meu filho tem muito trabalho, não tem tempo para nada" e outro "a minha filha gostava muito de me ter com ela, mas a casa é muito pequenina" e ainda outro "se os meus filhos pudessem tinham-me lá com eles, mas têm muitos filhos…”

E depois o “primo” de nome António, que por não ter ninguém de família adotou todos os funcionários e amigos como "primos”, e que me contou a sua vida em meia dúzia de frases desconexas. “Eu sou filho de latoeiros, que tiveram vida de saltimbancos. Em pequeno e até já mais velho andei com os meus pais lá pelo Alentejo. Aos seis anos andava a guardar porcos, dormia com eles nas pocilgas. O meu patrão sempre me tratou muito mal, mas eu não tinha nada nem ninguém e mantive-me lá até aos meus 30 e tal anos. Um dia de muita chuva em que me senti todo encharcado de lama, igual a muitos outros da minha vida, desesperado, tinha um capote que vesti, e pus-me a andar. Andei durante muitos dias a pé sem saber bem para onde seguia. Ia pedindo para comer; às vezes davam-me, às vezes não. Até que encontrei uma vila pequena e sentei-me nas escadas do posto médico. Era de manhã, uma senhora chegou, estranhou a minha figura triste e encharcada e fez-me perguntas. Depois trouxe-me para esta casa, que hoje é a minha. – Ó prima, dá-me um beijinho? É que eu em toda a minha vida poucos recebi.”

Dei um beijo naquele rosto enrugado, não tanto pela idade, mas pelas agruras da vida. E, num rompante, o “primo” António levantou-se e desapareceu no corredor de acesso aos quartos. Voltou alguns minutos depois, e trazia na mão um velho envelope, que me entregou.

– Quer que eu leia?

– Não, é para a prima.

– Para mim? Mas porquê… onde o encontraste?

– Estava sempre no bolso do meu capote… é uma prenda… porque me deu um beijinho.

 

                                                                 Clotilde Morgado Fonseca